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Paulina Chiziane sobre a "literatura que anda mais devagar"

João Carlos
9 de maio de 2023

Paulina Chiziane, que aprendeu a escrever na areia do chão, gosta sobretudo de ler sobre a natureza. Em entrevista à DW, a escritora moçambicana fala também da poligamia, da desigualdade e de outros desafios no feminino.

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Foto: João Carrlos/DW

Fenómenos como a poligamia e a desigualdade social são apenas parte dos inúmeros desafios que as mulheres enfrentam em Moçambique, segundo Paulina Chiziane, Prémio Camões 2021.

A escritora moçambicana diz que, mais que as intempéries naturais, o conflito armado em Cabo Delgado tem afetado o ensino e a educação dos jovens com a deslocação das populações.

Paulina Chiziane conversa esta terça-feira (09.05) com os leitores, em Lisboa, a capital portuguesa, onde há dias recebeu o diploma do Prémio Camões 2021, sobre a sua mais recente obra "Niketche", que aborda precisamente a questão da poligamia em África.

Paulina Chiziane sobre a "literatura que anda mais devagar"

DW África: Nesta altura, o que é que está a ler?

Paulina Chiziane (PC): Nada.

DW África: Mas gosta de ler?

PC: De vez em quando. Faço uns descansos, depois leio alguns artigos bem curtinhos. O que eu gosto mesmo de ler é sobre a natureza, acordar de manhã ver os pássaros, ver as minhas galinhas lá no quintal, regar as plantas, conversar com elas. Mas, sem dúvida, ler é o meu principal hobby.

DW África: Disse que neste momento não está a ler nada. Por uma questão de pausa?

PC: Por uma questão de preguiça, vamos ser sinceros. Vou lendo às vezes uma página de um livro que comecei a ler no ano passado sobre o pensamento africano. Leio uma página, depois vou passear, depois leio outra. A tentar chamar a energia, a inspiração.

DW África: Aproveito este contexto para ver com a Paulina como é que está a literatura em Moçambique?

PC: O que eu posso dizer é o seguinte: a literatura anda mais devagar, a música anda mais depressa. Tudo o que nós falamos sobre identidade é muito mais trabalhado muito mais rapidamente em música. Em literatura é um pouco mais difícil. Claro que escrever leva mais tempo, publicar tem outras regras, mas há muita proposta nova de gente nova escrevendo textos maravilhosos.

DW África: O problema é a capacidade de Moçambique poder absorver e divulgar essas obras, o que obriga os escritores a terem que recorrer a editoras estrangeiras…

PC: Exatamente! Há essa parte de dificuldade, mas os jovens que são criativos, hoje, muitos deles começam a publicar os seus textos em online e até alguns conseguem ganhar prémios internacionais sem ter o livro físico publicado mas um livro eletrónico. Então, a tecnologia também está a ajudar bastante.

Paulina Chiziane com o ministro da Cultura de Portugal, Pedro Adão e Silva
Paulina Chiziane com o ministro da Cultura de Portugal, Pedro Adão e SilvaFoto: João Carlos/DW

DW África: A realidade em Moçambique é equiparada à situação nos outros países africanos de língua portuguesa (PALOP). O que é preciso fazer para estimular, promover e divulgar mais a escrita, e despertar o interesse e o gosto pela leitura assim como a Paulina gosta de fazer?

PC: O gosto pela leitura existe. A necessidade de a promover também existe. O que não existe são meios. As zonas rurais, as mais recônditas, a gente vai até a um distrito que fica a 300 e tal quilómetros da cidade e às vezes os estudantes não têm papel para escrever. O livro não chega lá. Então, são vários os desafios que nós temos, mas mais uma vez digo: com o crescimento dos meios digitais vão lendo algumas coisas [nas plataformas eletrónicas], o que não é o ideal, mas pelo menos preenchem alguma lacuna. Nos nossos países os jovens gostam de ler mas não têm livros para ler. Quando a gente tem um livro disponível ele é caríssimo e não há dinheiro para comprar. São vários desafios.

DW África: Depois as intempéries naturais acabam por afetar esse esforço para que haja mais ensino, mais educação, mais produção literária. Soma-se a isto a situação de vulnerabilidade em Cabo Delgado…

PC: As intempéries naturais são o que são. Elas existem e temos que saber geri-las. O mais grave são as guerras, que nós não sabemos donde vêm e nem quando vão terminar. Portanto, queima-se bibliotecas, partem-se escolas, deslocam-se pessoas… É uma situação crítica.

DW África: Já agora, como é que retrata a mulher africana, a mulher moçambicana em particular, nas suas obras? Como é que olha para essa realidade, de questões como a desigualdade?

PC: Eu sou daquelas que, antes de falar das desigualdades entre homem e mulher, é preciso fazer uma pesquisa profunda sobre a própria mulher africana. Temos poucas bibliografias que falam da mulher africana. Então, gostaria de ver trabalhos referentes às mulheres e depois falar das desigualdades. E aos poucos as desigualdades vão-se superando.

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Há dias, estava a conversar com o reitor de uma universidade que dizia: "Eu não sei o que se passa. Este ano tenho 60% de estudantes do sexo feminino, 40% de homens e cada ano que passa parece haver mais rapazes a desistir e meninas que fazem o curso com boas notas em tempo útil". O que é que estará a acontecer? Será alguma demissão do masculino? Seja como for é muito bem-vindo este número de 60%, mas temos de procurar saber o que é que está a acontecer. Portanto, o que eu posso dizer é que os movimentos ao longo dos 40 anos de independência produziram este fenómeno que é novo para nós. Em muitas faculdades há mais mulheres do que homens, o que já é muito positivo.

DW África: O combate a fenómenos como a poligamia, que retrata nalgumas das suas obras, é apenas uma faceta dessa luta?

PC: São várias facetas. São várias lutas que temos que fazer. As mulheres têm saber o que é que a sua cultura diz de bom e de mau sobre as mulheres, têm também que lutar contra as desigualdades e tentar criar um mundo muito mais equilibrado.

DW África: A Paulina, pelo estatuto que tem, que foi ganhando graças ao seu trabalho, graças à sua produção literária, vai contribuir para que essa luta vá mais depressa, tendo em conta a futura ou a nova geração?

PC: Bem, eu vou fazendo o que posso, registando aquilo que eu posso registar e chamando a atenção para a necessidade de construção de uma sociedade harmoniosa. Porque durante algum tempo essa questão homem/mulher foi tratada como "guerra dos sexos". Como é que nós podemos tratar da mesma questão tentando criar harmonia entre os sexos? Este é um grande desafio.

Entrega do Prémio Camões a Paulina Chiziane pelo primeiro-minsitro de Portugal, António Costa, e o embaixador do Brasil, Raimundo Carreiro
Entrega do Prémio Camões a Paulina Chiziane pelo primeiro-minsitro de Portugal, António Costa, e o embaixador do Brasil, Raimundo CarreiroFoto: João Carlos/DW

DW África: Se estivesse com o Chico Buarque, o que é que lhe diria? Ele ganhou o Prémio Camões 2019 e só agora recebeu o prémio uma semana antes da sua cerimónia aqui em Lisboa.

PC: Primeiro lhe daria um grande abraço porque ele fez um discurso que chama a minha alma. É um discurso que fala comigo. E o que eu posso dizer-lhe agora é: obrigado Chico Buarque, continua a ser a pessoa que é. Faça o seu trabalho reconhecendo a contribuição dos negros na construção do mundo.

DW África: Este prémio que acaba de receber é estímulo para uma nova obra que aí vem ou ainda é cedo para falar de um novo projeto?

PC: Eu preciso de respirar, tomar um champanhe e depois refletir. Agora estou a relaxar. (risos)

DW África: Disse há dias que, por um lado, era preciso descolonizar a língua portuguesa, mas também valorizar as línguas nacionais dos países africanos lusófonos. O que é preciso fazer também para valorizar as nossas línguas em paralelo com a língua portuguesa?

PC: É um trabalho enorme [sobre o qual] não vamos conseguir grandes ganhos à partida. Mas é preciso dar o primeiro passo. No meu país, por exemplo, já estamos a introduzir as línguas nacionais na escola primária. Dá assim uma bronca, alguma incompreensão porque algumas pessoas acham que as suas línguas são inferiores, mas há um trabalho de consciencialização que está a ser feito para os pais começarem a valorizar estas línguas. O governo, o Ministério [da Educação], as agências internacionais estão a trabalhar nisso. Vai levar tempo. O que eu posso dizer é que foram séculos de colonização e de proibição do desenvolvimento das línguas [nacionais]. Não há-de ser de um momento para outro que as pessoas vão compreender. O importante é dar um passo de cada vez. Lá chegaremos.

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