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PolíticaAlemanha

O Tratado do Eliseu: 60 anos de amizade atribulada

Christoph Hasselbach
22 de janeiro de 2023

Há 60 anos, a Alemanha e a França assinaram o histórico Tratado do Eliseu, para transformar inimigos seculares em amigos. Como todas as amizades, também esta tece e tem os seus altos e baixos. Mas o sucesso é inegável.

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Celebraçãos do aniversário do Tratado do Eliseu
Foto: Michael Hanschke/dpa/picture alliance

Justamente dois políticos de idade já avançada, o chanceler federal alemão, Konrad Adenauer, na altura com 87 anos, e o Presidente francês, Charles de Gaulle, de 72, entraram para a História como os grandes inovadores das relações entre a Alemanha e a França, marcadas, durante séculos, por uma profunda inimizade.

Quando assinaram o tratado que declarou amigos os dois países, em 22 de janeiro de 1963, na residência oficial do Presidente francês, o Palácio do Eliseu, Adenauer e de Gaulle selaram a nova amizade com um aperto de mãos e a troca de um beijo fraternal.

A Segunda Guerra Mundial acabara havia apenas 18 anos. Os acontecimentos ainda estavam frescos na memória de milhões de veteranos da guerra de ambos os lados. Mas muito antes da ascensão ao poder de Adolf Hitler, já as crianças alemãs aprendiam na escola que a França era o hereditário.

Adenauer e de Gaulle tinham a experiência de duas guerras mundiais, o que deu à sua causa "ainda mais credibilidade", disse à DW Frank Baasner, diretor do Instituto Franco-Alemão. Mas sem os povos de ambos os países, o tratado não teria existido. Muito antes da assinatura, "já havia uma aproximação muito bonita, espantosa e corajosa entre os cidadãos comuns. Não devemos esquecer que o tratado foi o culminar de um processo de reaproximação que veio da sociedade", explicou Baasner.

Konrad Adenauer e Charles de Gaulle
O beijo fraternal entre o chanceler alemão Adenauer (esq) e o Presidente francês de GaulleFoto: ZUMA/Keystone/IMAGO

Interesses estratégicos divergentes

Para além do aspeto humano, tanto Adenauer como de Gaulle procuraram a aproximação por motivos estratégicos, que, até certo ponto até se contradiziam. "Por parte de Adenauer havia a clara prioridade e convicção de que a Alemanha se devia ancorar no Ocidente. O que implicava uma parceria com os EUA, e a reconciliação com a França", diz Baasner.

De Gaulle queria vincular a República Federal da Alemanha (RFA) à França, para impedir que se aliasse aos Estados Unidos da América (EUA) e à Grã-Bretanha contra o vizinho. Uma semana antes, de Gaulle tinha vetado a adesão da Grã-Bretanha à Comunidade Económica Europeia, precursora da União Europeia (UE). E o Presidente dos EUA, John F. Kennedy, tentou mesmo impedir a assinatura do Tratado do Eliseu.

O propósito de Kennedy falhou. Mas o Presidente conseguiu que a Alemanha inserisse um preâmbulo no tratado pouco antes da ratificação pelo Parlamento alemão, que deixou claro que a cooperação na NATO e a parceria com os EUA não seriam afetadas pelo acordo. Paris anuiu publicamente à alteração. Mas diz-se que, nos bastidores, de Gaulle não escondeu a sua ira. "Os americanos estão a minar o nosso tratado", disse o Presidente francês, segundo o seu confidente, o político Alain Peyrefitte. "E porquê? Só porque os políticos alemães receiam não rastejar suficientemente fundo aos pés dos anglo-saxões", terá dito de Gaulle.

Futebol fãs
A reconciliação só funcionou porque os dois povos assim o quiseram Foto: IMAGO

Intercâmbio entre os jovens e geminação de cidades

Apesar das tensões iniciais, o Tratado do Eliseu é largamente considerado um sucesso. Segundo Baasner, o objetivo era "chegar tanto quanto possível a uma atitude de convergência" através de consultas regulares entre os governos sobre as políticas externa e de segurança. "Penso que se conseguiu muita coisa desde o início da cooperação", afirma o perito. O lado francês percebeu "que os alemães, apesar dos fortes laços com os EUA, não tinham toda a intenção de cumprir o tratado".

O tratado visava muito mais do que aproximas os políticos. Em julho de 1963 foi fundado o Gabinete da Juventude franco-alemão, que, até à data, facilitou o intercâmbio bilateral de cerca de dez milhões de jovens alemães e franceses.

Também foram fechados numerosos acordos de geminação de autarquias. Em 1989 foi fundada a brigada militar franco-alemã. Três anos mais tarde, lançado o canal de televisão binacional Arte.

No 40º aniversário do Tratado do Eliseu, em 2003, foram introduzidos conselhos ministeriais conjuntos regulares. Em 2017, o Presidente Emmanuel Macron, discurso da Sorbonne sobre o futuro da UE agora famoso, apelou para uma remodelação do Tratado do Eliseu. O resultado foi o Tratado de Aachen de 2019, que inclui, entre outros, uma assembleia parlamentar franco-alemã e um fundo para financiar a aproximação dos cidadãos.

Valery Giscard d'Estaing und Helmut Schmidt
Os amigos chanceler Helmut Schmidt (esq) e Presidente Valery Giscard d'Estaing abriram o caminho ao euro Foto: Michael Kappeler/AFP/Getty Images

Merkozy, mas não Schacron

Ao longo dos anos, os líderes consecutivos dos dois países umas vezes harmonizavam melhor do que outras. Nos anos 70 do século passado, uma profunda amizade uniu o chanceler social-democrata Helmut Schmidt e o aristocrático liberal Valéry Giscard d'Estaing. Juntos lançaram as bases para a moeda única europeia, o euro. A filiação partidária e mentalidades muito diferentes separavam o democrata-cristão Helmut Kohl do socialista François Mitterand. Mas deles o mundo retém a imagem de mãos dadas no cemitério militar de Verdun em1984, em memória dos mortos das duas guerras mundiais, um dos mais importantes símbolos da reconciliação.

Também a serena Angela Merkel e o hipercativo Nicolas Sarkozy colaboraram estreitamente durante crise do euro de 2008. De tal modo que jornalistas criaram o termo Merkozy para descrever a parceria. Já o Merkron (para Merkel e Emmanuel Macron, o atual Presidente francês), nunca vingou, porque as relações entre ambos não eram completamente harmónicas. Para Emmanuel Macron e Olaf Scholz, o atual chanceler alemão, nunca sequer se tentou criar um termo conjunto.

Em público, Macron e Scholz reafirmam ritualmente as relações estreitas entre os dois países. Mas, até agora, nada indica uma proximidade pessoal. Politicamente, também há, neste momento, alguma fricção, por exemplo, no contexto da guerra de agressão russa na Ucrânia. Macron e Scholz levaram muito tempo para decidirem viajar juntos para Kiev. No que toca ao fornecimento de armas à Ucrânia, Scholz mostra-se muito mais hesitante do que Macron. Quando se debateu a limitação do preço do gás na Europa, Macron chegou a advertir publicamente a Alemanha de estava a "isolar-se" na Europa, o que foi sentido como uma afronta a Berlim. Projetos militares comuns, como o desenvolvimento de um avião de combate franco-alemão, avançam a passo de caracol.

Helmut Kohl e Francois Mitterand em Verdun
Verdun 1984: A imagem mais emblemática da reconciliação franco-alemãFoto: ullstein bild/Sven Simon

O diálogo não morre

Frank Baasner do Instituto Franco-Alemão diz não se deve exagerar os problemas. "A capacidade de encontrar diálogo, mesmo em situações de crise, não desapareceu. É verdade que as diferenças de interesse existem, e talvez as orientações estratégicas também sejam diferentes". Ao contrário da França, a Alemanha sempre hesitou em desenvolver uma visão geoestratégica do mundo, explica o perito. "Agora a Alemanha está numa situação em que o tem que o fazer também". Por isso Baasner vê boas hipóteses dos parceiros reaproximarem em breve.

E a língua? Há anos que o número de alunos de língua alemã em França diminui diminuir significativamente. Responsável pelo declínio são a falta de professores e a falta de interesse dos responsáveis. A situação é muito parecida do lado alemão da fronteira. Diz-se que numa entrevista Giscard d'Estaing suspirou uma vez a propósito do problema linguístico: "On s'arrange avec l'anglais", numa tradução livre: "Amanhamo-nos com o inglês".