França e África: Uma separação em câmara lenta
1 de agosto de 2020Liberdade, alívio, esperança - estes terão sido os sentimentos de milhões de africanos quando o regime colonial francês terminou no continente, há 60 anos. Só em agosto de 1960, nove colónias francesas obtiveram a independência. No total, foram 14 nesse ano: Benim, Burkina Faso, Camarões, Chade, Congo-Brazzaville, Madagáscar, Mauritânia, Gabão, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Mali, Níger, Senegal e Togo.
Em 1830, França foi o primeiro país a ocupar a Argélia, seguindo depois pelo Sahel e por grandes partes da África Ocidental e Central. Levaria muitos anos até se soltarem as amarras do colonialismo. Milhões de africanos sofreram e morreram às mãos de França. Foi apenas em 1946 que França fundou a União Francesa, permitindo aos territórios africanos enviarem representantes políticos à Assembleia Nacional - mas sem falar de soberania. Em muitas regiões, aumentava a resistência a França. A Guiné-Conacri tornar-se-ia independente em outubro de 1958 – o primeiro dos territórios franceses a fazê-lo.
Sem liberdade, sem independência
"60 anos depois, os países francófonos de África ainda não têm verdadeira independência e liberdade de França", diz Nathalie Yamb, do Partido da Liberdade e Democracia da República da Costa do Marfim (LIDER). Isto começa com os livros escolares, cujo conteúdo ainda é muitas vezes determinado em França.
Em muitos destes países, continua a existir um sistema estatal introduzido pela França. "Pouco antes da independência se tornar realidade, em 1960, França decidiu abolir o sistema parlamentar em alguns países como a Costa do Marfim e preparar um regime presidencial em que todos os territórios e poderes estão nas mãos do chefe de Estado", explica Yamb, em entrevista à DW. A ideia era "manter os países na mão, apenas uma pessoa que concentra todos os poderes tem de ser manipulada".
A ‘Françafrique', como é chamada a influência francesa nas antigas colónias, mantém-se e, especialmente entre a juventude, cresce o ressentimento contra a antiga potência colonial. Desde os anos 1980, vários candidatos presidenciais prometeram virar as costas à ‘Françafrique'.
Mas a promessa de um novo começo entre França e os estados francófonos de África não passa de um ritual, segundo Ian Taylor, professor de política africana na Universidade de St. Andrews, na Escócia. "Falam de mudança, mas logo após a tomada de posse, os presidentes franceses apercebem-se que o interesse económico e político em África é demasiado forte e que não há um interesse real na mudança de ambos os lados".
Recursos, controlo e militares
Mas porque é que nem as elites africanas nem França parecem querer separar-se da ‘Françafrique'? De acordo com Paul Melly, do programa África do think tank britânico Chatham House, os interesses privados das elites estão na origem do fracasso do programa. Em 1962, o Presidente francês Charles de Gaulle encarregou o seu conselheiro Jacques Foccart de construir a ‘Françafrique'. "Foccart construiu uma rede de contatos pessoais entre a liderança francesa e as elites das antigas colónias francesas", explica Paul Melly. "Eram frequentemente ligações muito pessoais, mas tinham também um carácter não transparente, muito paternalista, muito controlador".
Foccart criou tratados com os governantes dos países que ainda hoje são válidos: em troca de proteção militar contra tentativas de golpe de Estado e de pagamentos milionários, os países africanos garantiram às empresas francesas o acesso a recursos estratégicos como diamantes, minérios, urânio, gás e petróleo. Hoje, França tem uma sólida presença no continente - com 1.100 grupos empresariais, cerca de 2.100 filiais e a terceira maior carteira de investimentos, depois do Reino Unido e dos Estados Unidos.
O Pacto Colonial continua também a garantir à França o direito de preferência sobre todos os recursos naturais e o acesso privilegiado aos contratos governamentais.
França está atualmente a liderar a operação militar Barkhane contra grupos islamistas na região do Sahel. Envolve 5.100 soldados de diferentes países, desde fevereiro de 2020. Segundo o New York Times, em 2007 quase metade das 12.000 tropas francesas de manutenção da paz foram destacadas para África, tanto com papeis militares como consultivos, para apoiar e estabilizar os regimes dos respetivos países.
Françafrique torna-se África-França?
Tudo isto é mais do que frustrante, considera Yamb: "Os presidentes destes países africanos ainda querem servir França em vez de colocarem os interesses do seu povo em primeiro lugar. São os jovens de África que exigem uma verdadeira independência e querem romper com esta relação sem sentido e disfuncional com a França".
Caroline Roussy, assistente de investigação no Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas em França (IRIS), ressalva: "A independência não está completa, mas não a podemos comparar com os anos 1960. França e o Presidente Emmanuel Macron tentaram mudar o padrão e o paradigma, dizendo ‘Estamos a começar uma nova história entre França e África, estamos a acabar com a Françafrique'".
Prova disso seria a cimeira "Afrique-France" do Governo francês e de todos os governos africanos, que foi adiada devido à Covid-19. Juntos, devem procurar aqui projetos e soluções para construir cidades e regiões sustentáveis em África e para enfrentar os desafios da urbanização maciça que se espera nas próximas décadas no continente.
Um trocadilho de Macron
No entanto, Nathalie Yamb considera que a iniciativa é um puro jogo de palavras. "Françafrique, Afrique-France - pode brincar com as palavras, mas isso não altera o sistema". Na sua opinião, as relações entre França e os países africanos francófonos sob Macron deterioraram-se ainda mais. "Penso mesmo que Emmanuel Macron é um dos piores presidentes. Ele comporta-se como de Gaulle e não esconde a sua vontade de manter esta relação entre África e França pela força".
Mas Caroline Roussy sublinha: "Quando Macron entrou em funções, cometeu alguns erros, a meu ver, quando convocou os presidentes do G5 Sahel, por exemplo, em vez de os visitar. Mas ele também fez muitas coisas". Por exemplo, colocou a ministra dos Negócios Estrangeiros ruandesa Louise Mushikiwabo à frente da Organização Internacional da Francofonia e prometeu devolver a maior parte dos artefatos africanos armazenados nos museus franceses.
África em primeiro lugar?
"Se França perde África, França não é nada", frisa Yamb. "Macron está a tentar impor a África uma relação que os africanos já não querem".
Um exemplo é o Eco, a nova moeda única da África Ocidental, que deverá substituir o chamado franco CFA. "O Eco é um projeto muito antigo da CEDEAO. França decidiu ‘roubar' o nome do projeto. Dizem que estão a mudar o sistema, mas só estão a mudar o nome", afirma. "Deve ser uma iniciativa de um governo africano. Não pode ser anunciado, concebido ou planeado por França".
O franco CFA está ligado ao euro - o que impossibilita uma política monetária independente. Além disso, estes países africanos pagam até 65% das suas reservas de divisas ao tesouro francês. "Parece incrível, mas os governos africanos não sabem quanto dinheiro no tesouro pertence a cada país, individualmente", diz Taylor. Acusa a França de voltar a declarar este dinheiro africano como ajuda ao desenvolvimento para os depositantes originais, projetando assim o seu poder na região. E a paridade fixa com o euro do franco CFA, o futuro Eco, deverá manter-se.
"O CFA deve ir, é uma partida neo-colonial ridícula dos franceses que deveria ter desaparecido há 60 anos. O primeiro passo para a verdadeira independência dos países francófonos de África é enterrar o CFA. E com ele, a ‘Françafrique'", conclui o cientista político Ian Taylor.