Qual é a responsabilidade do GSI nos atos golpistas?
O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) deveria ter atuado para coibir os atos de vandalismo ocorridos em Brasília no último domingo (08/01), e sua inação pode estar relacionada à atuação dos militares para desestabilizar a democracia no Brasil. Essa é a avaliação de especialistas ouvidos pela DW sobre as atribuições do ministério responsável pela segurança do Palácio do Planalto.
A ausência de resposta do GSI ao ataque golpista foi apontada pelo governo logo após o episódio. O ministro da Justiça, Flávio Dino, disse em entrevista coletiva que existe um contingente dedicado à proteção da sede da Presidência da República e que "esse contingente não atuou". "Aí é uma apuração específica do GSI e do Ministério da Defesa", afirmou.
Assim, os incidentes de domingo deterioram a relação entre o governo Lula e o ministério, acentuando problemas iniciados no período de transição, em dezembro. "Hoje, o GSI é mais uma ameaça do que uma proteção ao Estado brasileiro", diz Adriana Marques, professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ.
"Era função do GSI prever, a partir das informações derivadas das agências de inteligência civis e militares, a radicalização dos manifestantes claramente externada no decorrer dos últimos meses", complementa Júlio César Cossio Rodriguez, professor do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
"Se tem algo que o GSI deveria ter feito é evitado os atos de domingo. Trata-se da linha de defesa do Estado mais próxima de seu núcleo: onde se concentra o poder político, cristalizada nos três poderes, e o ataque em Brasília significa um assalto que bateu direto nesse 'centro'. Não foi efetivo em produzir a troca de regime almejada [golpe militar], mas indicou um sério problema: nossa defesa nacional está com um furo ou uma zona de sombra bem no pilar de sustentação do Estado", analisa Piero Leirner, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar.
Lernier diz ainda que os erros na segurança do Planalto podem ter sido propositais. "A noção de que o GSI 'falhou' não me parece corresponder aos fatos. O GSI e as Forças Armadas pavimentaram os eventos, cozinhando por meses a presença desses manifestantes nas portas dos quartéis, com ampla presença da 'família militar'. O próprio ministro da Defesa [José Mucio] defendeu as manifestações. Por isso, não cabe nem a ideia de que o GSI errou: ele deliberou que sua atuação serve apenas para proteger a instituição militar."
O jornal Folha de S.Paulo revelou nesta segunda-feira (09/01) que a Abin, agência de Inteligência subordinada ao GSI, produziu alertas sobre a iminência dos ataques ocorridos em Brasília. Segundo a publicação, os alertas foram enviados aos membros do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), rede que une 48 órgãos em 16 ministérios. Questionado pela Folha, o GSI não se manifestou.
Criação do GSI e aparelhamento militar
A estrutura conhecida como GSI foi criada em 1938, durante a ditadura de Getúlio Vargas, com o Gabinete Militar. A pasta adquiriu status de ministério em 1974, durante a ditadura, e em 1994 ganhou a forma atual. "Um órgão nesses moldes deveria ser extinto em uma democracia, mas Fernando Henrique Cardoso não fez isso", pontua Adriana Marques.
Após ser extinta em 2015 pela presidente Dilma Rouseff (PT), a pasta foi recriada por Michel Temer (MDB) no ano seguinte. Atualmente, além do gabinete do ministro do GSI, a pasta é formada por uma série de secretarias de defesa, segurança nacional e assuntos estratégicos, além da Abin.
A gestão Temer ficou marcada pelo fortalecimento do GSI no centro do poder do Executivo, o protagonismo dos militares nas discussões políticas e a maneira como eles extrapolaram temas relacionados à defesa e à segurança nacional.
"Se nós lembrarmos do Temer, ele tinha o general Sergio Etchegoyen como um dos seus principais conselheiros. Ele foi um dos mais importantes aliados do governo, e o ministério foi turbinado", relembra Marques. "O GSI começou a receber atribuições que o transformaram numa máquina de administração da política", complementa Leirner.
Com a chegada de Jair Bolsonaro, o aparelhamento político do GSI se intensificou. Ao longo dos quatro anos, a pasta ficou sob comando de General Heleno, que, entre outras polêmicas, esteve envolvido em uma suposta utilização da Abin para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente, nas investigações sobre as rachadinhas.
"Heleno não usou o GSI para defender o Estado, mas para defender o presidente da República, a família Bolsonaro e fomentar atos antidemocráticos. A estrutura foi completamente desvirtuada desde 2019. Há uma sensação de desconfiança muito grande em relação ao GSI neste momento", afirma Marques.
"O general pode ter tido um papel-chave no enraizamento do bolsonarismo nas forças que fazem a defesa presidencial e nos órgãos de inteligência. Ele atuou para politização desses órgãos, que passaram a atuar em desvio de função constitucional", aponta Cossio Rodriguez.
Para Leirner, os ataques de domingo em Brasília representam algo maior na estrutura que envolve não só o GSI, mas na atuação dos militares na democracia. "Os militares se envolveram – e foram envolvidos pelo Judiciário –
no processo eleitoral. E não reconheceram até agora as eleições. Bastava uma canetada dos comandantes e essa 'energia' dissiparia. Então, o que era primeiramente uma contestação de resultado virou uma contestação de governo, e depois do regime democrático. Sendo que eles [militares] estiveram envolvidos até o pescoço com urnas, códigos e afins. Isso é algo que só pode ser lido na chave da 'desestabilização'."
O futuro do GSI
Desde que venceu as eleições, o PT tem tentado esvaziar as atribuições do GSI. Uma das críticas é a presença massiva de militares, como um resquício da ditadura. De janeiro de 2019 a fevereiro de 2021, o número de militares na pasta cresceu 38%, passando de 753 para 1.038.
Os dados, publicados pelo jornal O Estado de S.Paulo e obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), mostravam que 988 dos 1.038 integrantes eram militares da Marinha, Aeronáutica e Exército. No início de dezembro, uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que assessores do presidente Lula estavam preocupados com a atual organização do GSI e sua responsabilidade para cuidar de temas sensíveis ao país.
Assim, a equipe de transição tirou do GSI a segurança presidencial e deixou a tarefa com a Polícia Federal. O GSI também não participou da segurança do governo de transição instalado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). "Essa desconfiança do governo Lula é natural, até porque o PT tem dificuldade na relação com os militares", afirma Adriana Marques.
Para comandar o GSI, Lula escolheu o general da reserva Marco Edson Gonçalves Dias. Ele foi o chefe da segurança presidencial de Lula ao longo dos oito anos de mandato do petista. Além disso, dirigiu a Coordenadoria de Segurança Institucional na administração de Dilma Rousseff, que o promoveu a general.
"Se apenas a mudança de nome tivesse sido suficiente não teríamos visto o que ocorreu domingo", diz Leirner. Para Cossio Rodriguez, trata-se de alguém com "experiência na função e tem a confiança do presidente". "Será fundamental como interlocutor com as Forcas Armadas e de segurança pública para desfazer os danos às instituições herdadas do governo Bolsonaro", ressalta o professor da UFSM.
Segundo Adriana Marques, Gonçalves Dias não foi bem em seu primeiro teste. "Ele errou quando decidiu não modificar a estrutura da pasta, como foi proposto pela equipe de transição. Ele achou que a estrutura estava bem montada. Mas para quem? Para sustentar esse tipo de ação que vimos no domingo. Para o governo Lula, faltou informação", argumenta.
Ela defende uma mudança significativa na organização do ministério. "A estrutura do GSI precisa ser repensada. E acho que não é o caso de manter os militares da forma como estão hoje. Eles podem participar, mas sem o status de ministério."