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A rixa de Lula e Campos Neto e a autonomia do Banco Central

Publicado 10 de fevereiro de 2023Última atualização 24 de março de 2023

Para economistas, petista pode estar buscando transferir responsabilidade por provável baixo crescimento econômico neste ano. Já analistas políticos veem origem do embate na proximidade do chefe do BC com Bolsonaro.

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Roberto Campos Neto
Sob a mira de Lula: presidente do BC, Roberto Campos Neto, passou a ser alvo frequente de críticas do chefe de governoFoto: Sergio Lima/AFP

As críticas frequentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à política de juros e controle de inflação do Banco Central (BC) têm nome e sobrenome: Roberto Campos Neto. O presidente da autarquia que define a política fiscal do país foi indicado ao cargo em fevereiro de 2019, pelo antecessor de Lula, Jair Bolsonaro.

Campos Neto é o primeiro no cargo após a Lei Complementar 179, que instituiu a autonomia política na presidência da autarquia federal, em vigor também desde fevereiro de 2019. O mecanismo estabelece mandatos de quatro anos para presidente e diretores do BC, com o argumento de blindar esses servidores de eventuais intervenções por parte do Executivo na definição da taxa de juros básica, a Selic, e no controle da inflação. Definida pelo Comitê de Política Econômica (Copom) do Banco Central, a taxa está atualmente em 13,75%, o maior patamar desde agosto de 2022 e considerado excessivo por Lula.

Nesta quinta-feira (24/03), o presidente voltou a criticar Campos Neto após o Copom ter decidido, pela segunda vez no atual governo, manter a Selic em 13,75% ao ano.

"Eu digo todo dia: não tem explicação para nenhum ser humano do planeta Terra a taxa de juro no Brasil estar a 13,75%. Não existe explicação", afirmou Lula, durante visita a um complexo da Marinha no Rio de Janeiro onde são construídos os novos submarinos brasileiros.

"Como presidente da República, não posso ficar discutindo cada relatório do Copom, eu não posso. Eles que paguem o preço pelo que eles estão fazendo. A história julgará cada um de nós", disse o presidente, que ainda sugeriu que o Senado interviesse no tema.

"Quem tem que cuidar do Campos Neto é o Senado que o indicou. Ele não foi eleito pelo povo, ele não foi indicado pelo presidente, ele foi indicado pelo Senado. Quando eu tinha o Meirelles, que era indicado meu, eu conversava com o [Henrique] Meirelles. Agora, se ele quiser, esse cidadão nem precisa conversar comigo."

Por um lado, economistas ouvidos pela DW afirmam que as pressões de Lula sobre Campos Neto para baixar a Selic são uma maneira de transferir a responsabilidade para a instituição por um provável baixo crescimento econômico neste ano – 0,88% segundo o boletim Focus. Já analistas políticos apontam para a proximidade do atual presidente do BC com o ex-presidente Bolsonaro, o que tem causado desconforto no governo atual.

Juros e inflação

A Selic regula o acesso ao crédito, com níveis mais altos levando, ao menos na teoria, a um menor consumo como forma de conter a inflação, mantendo-a dentro da meta, que é definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), colegiado composto pelos ministros da Fazenda, Planejamento e pelo próprio presidente do BC.

A meta para este ano está em 3,25%, e conta com tolerância de 1,5 ponto para cima e para baixo. De acordo com a última edição do Boletim Focus, a expectativa é que a inflação ultrapasse a meta em 2023, com os agentes econômicos prevendo um IPCA de 5,95%. Isso aconteceu em 2022, quando o IPCA ficou em 5,79%. Cada vez que a meta é estourada, o presidente do BC precisa prestar contas ao ministro da Fazenda, como ocorreu recentemente.

Lula faz discurso com bandeira do Brasil e a bandeira presidencial ao fundo
"Não tem explicação para nenhum ser humano do planeta Terra a taxa de juro no Brasil estar a 13,75%", disse LulaFoto: Sergio Lima/AFP

Além da Selic, as pressões sobre o BC também vêm recaindo na meta de inflação. Segundo Ecio Costa, o professor titular de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mudar essas balizas econômicas "na marra" tampouco significaria um maior acesso ao crédito, porque o mercado continuaria cobrando mais caro pelo crédito. "Se você tira ou eleva essas expectativas, os juros não necessariamente vão cair, porque se a expectativa de inflação é mais alta, o mercado precifica os juros num patamar mais elevado, para justamente conter essa inflação", explica.

Ele diz que os demais países emergentes têm seguido, no geral, metas de inflação de 3%, dentro do que é defendido pelo CMN. "Quando você tem esse processo inflacionário, os alimentos têm uma inflação mais alta que os demais itens. Se vai para 5% ou 6% no geral, para os mais pobres talvez esteja 10%, o que faz o poder de compra cair. Aí temos um problema sério", complementa.

Durante a pandemia, a Selic chegou a 2%, o que, para Costa, foi justificado pela queda na atividade econômica causada principalmente pelo isolamento social, o que gerou deflação em alguns meses.

A Selic voltou a aumentar durante 2021 e 2022, chegando ao patamar atual em agosto do ano passado. O economista aponta que a inflação só não foi maior em 2022 por causa da PEC dos Combustíveis, que limitou o ICMS. "Ainda há pressão inflacionária aqui, como nos outros países", acrescenta.

Autonomia do Banco Central

Embates entre chefes de governo e presidentes de bancos centrais não ocorrem apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed), que também goza de autonomia junto ao Executivo, foi alvo constante de Donald Trump durante o mandato do ex-presidente republicano. Ele chegou a chamar a instituição de "patética" justamente pela política de juros. Na União Europeia, a independência dos bancos centrais dos países-membros foi uma exigência da Alemanha para a construção do bloco continental.

Para o professor de economia do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Ricardo Rocha, as críticas de Lula à autonomia do BC vão contra o praticado nos primeiros dois governos do petista, que teve Henrique Meirelles à frente da autarquia. "Quando o Meirelles presidiu o BC, ele tocou a política monetária do jeito que tinha que tocar. Nos dois mandatos do Lula, teve momento de taxas de juros muito altas, então não me parece que a briga dele é técnica", afirma Rocha, que diz que uma das justificativas para o embate pode ser uma pressão ao próprio CMN para que se aumente as metas de inflação.

Prédio de arquitetura moderna rodeado de árvores com céu azul ao fundo
Sede do Banco Central, em Brasília. Autarquia define a política de juros do paísFoto: Pedro Ladeira/AFP

Segundo a legislação, a deposição do presidente do Banco Central deve ser aprovada por maioria simples no Senado (41 votos de 81 parlamentares). O professor do Insper, porém, diz que a reação do mercado a uma medida como essa seria péssima. "Se isso acontecer, juros e câmbio vão ter um salto muito grande. É mais ou menos dar um tiro no pé", acrescenta.

Costa, da UFPE, lembra que a autonomia do BC foi importante principalmente nas eleições de 2022, quando a autarquia comandada por Campos Neto não reduziu a Selic às vésperas do pleito. "Se o Banco Central não fosse autônomo, possivelmente o presidente [Bolsonaro] não teria deixado assim. Teria acontecido alguma interferência, como houve no passado. Era um ano eleitoral, qualquer notícia positiva ajudaria muito", destaca.

Resquício do bolsonarismo

Politicamente, no entanto, a questão entre Lula e Campos pode ir além de uma briga por rumos econômicos, chegando a uma disputa ideológica. Segundo o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), o contexto político atual faz o terceiro governo de Lula ser bem diferente dos dois primeiros mandatos.

"Lá atrás, Lula assumiu na esteira do FHC. Estava habituado a uma ideia de república estável, de princípios democráticos. Agora a oposição não é mais galante de tucanos esclarecidos – tem um grupo de aloprados golpistas que aparelharam o Estado. Nessa conjuntura, uma das preocupações dele é a garantia das instituições republicanas contra o golpismo bolsonarista", analisa Lynch.

O pesquisador da UERJ afirma que, por causa disso, o presidente do Banco Central é visto como um meio pelo qual o bolsonarismo tenta se manter. "Ele vê o Campos Neto como alguém que não é confiável. O problema é menos a independência do BC do que a pessoa do Roberto Campos, que é comprometido com o projeto neoliberal do Paulo Guedes até o pescoço", acrescenta.

Apoio a Bolsonaro

Durante as eleições de 2022, Campos Neto foi votar vestido com a camisa da seleção brasileira, num ato simbólico de apoio a Jair Bolsonaro. Em fevereiro o presidente do Banco Central também foi flagrado em um grupo de WhatsApp com outros ex-ministros do governo anterior. Para Carolina Botelho, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e Opinião Pública (Doxa/IESP) da UERJ, esse último ponto coloca em xeque a independência de Campos Neto.

"A autonomia do BC não tira o caráter político de quem está cumprindo o mandato. A indicação é um cargo político", diz ela. "Portanto, é bastante surpreendente ver que Campos Neto mantém um diálogo com o ex-governo. Essa é a grande questão. A crise veio daí, de um presidente que se outorgou a autonomia pela Constituição, o que não dá liberdade para conversar com pessoas do governo Bolsonaro", acrescenta.

Botelho afirma que cabe ao gestor do BC agir com responsabilidade, assim como a responsabilização. "Numa situação republicana, o próprio presidente do Banco Central deveria se desculpar ou mesmo se demitir, porque isso fere um espaço político importante que ele ocupa. Essa mensagem que ele deu para a sociedade é desastrosa. Ele está como um presidente de um banco de um novo governo conversando com ministros e elites estratégicas de um outro governo", opina a cientista política, que vê o movimento de Lula como uma forma de evitar um problema de governabilidade. "O jogo está claro, e há poucas razões para crermos que eles são cooperativos", conclui.