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O futuro da charge, 5 anos após ataque ao "Charlie Hebdo"

Suzanne Cords md
7 de janeiro de 2020

Desde que atiradores promoveram um banho da sangue na redação da publicação de humor parisiense, a sátira política desenhada está em crise na imprensa.

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"Charlie Hebdo, cinco anos depois", desenho de Guillaume Doizy
"Charlie Hebdo, cinco anos depois",de Guillaume DoizyFoto: Guillaume Doizy

O 7 de janeiro de 2015 começa para os funcionários do semanário satírico parisiense Charlie Hebdo como um dia qualquer. Eles fazem uma reunião de pauta onde discutem possíveis temas. Sobre a mesa está um bolo, um dos ilustradores faz aniversário.

Mas por volta das 11h30, dois atiradores entram repentinamente e abrem fogo. Onze dos presentes morrem na chuva de tiros das kalashnikovs. Os criminosos então correm para a rua e gritam: "Alá é grande. Matamos Charlie Hebdo. Vingamos o profeta Maomé".

O atentado dos irmãos Chérif e Said Kouachi, que até então tinham se destacado como pequenos criminosos nos subúrbios de Paris, se dirigia ao periódico que ousara publicar caricaturas de Maomé.

Uma onda de solidariedade percorre o mundo após o banho de sangue. O slogan "Je suis Charlie" (Eu sou Charlie) fica conhecido em todo o planeta. Poucos dias após o massacre, mais de 4 milhões saem às ruas em toda a França, em nome da liberdade de expressão e contra o terrorismo. Em Paris, o então presidente, François Hollande, lidera uma passeata com participação de chefes de Estado e de governo de todo o mundo.

Bernd Pohlenz
Bernd Pohlenz: "Ataque provocou um choque paralisador"Foto: Privat

Entre os chargistas, o clima também é de horror. "O desânimo e a tristeza dos colegas se aliavam à raiva", lembra Bernd Pohlenz, cartunista de Berlim. Como criador do portal Toonpool, uma coleção de cerca de 300 mil charges de 2.500 artistas de 120 países, ele mantém contato próximo com artistas de todo o mundo.

"O ataque terrorista parisiense provocou um choque paralisador, um sentimento de, sem ser consultado, se pertencer ao pessoal de uma guerra entre dois mundos conflitantes. Para muitos artistas, a mídia com que trabalhavam ganhou, de repente, o significado de uma arma. Eles se viam como soldados no campo de batalha", afirma, lembrando, entretanto, que quase todos os cartunistas voltaram a sua vida cotidiana já depois de algumas semanas, sem qualquer "tesoura na cabeça".

O caso Rushdie

O francês Guillaume Doizy, que trabalha intensamente com a história do desenho na imprensa, concorda com essa visão: "As pessoas queriam contrabalançar o ataque à liberdade de expressão." Aliás, esse ataque começou mais cedo, com o primeiro conflito mundial do tipo, contra o romance de Salman Rushdie Os versos satânicos, de 1988.

A obra provocou uma série de protestos e atos de violência por parte dos muçulmanos. O líder religioso iraniano aiatolá Ruhollah Khomeini emitiu uma fatwa contra Rushdie, um decreto religioso exigindo a morte do escritor, sob a alegação de que o livro era "contra o Islã, o profeta Maomé e o Corão".

Chefes de Estado e governo em marcha em Paris
Chefes de Estado e governo participaram de marcha em Paris pela liberdade e contra o terrorismo, quatro dias após atentadoFoto: Reuters/Wojazer

No campo das caricaturas, a primeira celeuma internacional foi em 2005, quando o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou 12 desenhos satíricos de Maomé – por exemplo, com uma bomba em lugar de turbante –, mais tarde também divulgados na Noruega. Dois dos ilustradores tiveram que se esconder devido a ameaças. O então primeiro-ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, apoiou o jornal e rejeitou o pedido para uma conversa com embaixadores de 11 países islâmicos.

Muçulmanos furiosos ameaçaram invadir as embaixadas dinamarquesas e norueguesas em seus países. Em 2008, as autoridades de segurança dinamarquesas descobriram planos de assassinato contra Kurt Westergaard, um dos cartunistas de Maomé. Dois anos depois, ele escapou por pouco de um ataque realizado por um suposto islamista.

Segundo Guillaume Doizy, a maioria dos muçulmanos também pode rir sobre caricaturas religiosas – e se ficarem irritados, que seja como um cristão ou um budista quando sua religião é retratada satiricamente. "Mas sempre há um pequeno grupo que usa essa ocasião para reforçar suas crenças religiosas e manipular as pessoas", avalia o especialista, frisando que, nesse caso, o que há de se fazer é mostrar atitude e seguir em frente.

Guillaume Doizy
Guillaume Doizy: "Sempre há um pequeno grupo que usa a ocasião para manipular"Foto: Privat

Festa de 50 anos sob proteção policial

Também os editores sobreviventes do Charlie Hebdo voltaram à carga uma semana após o ataque, com uma nova edição da revista. A capa mostrava um Maomé desconsolado segurando um cartaz escrito "Je suis Charlie", sob o título "Tudo está perdoado".

A circulação do jornal, que era antes um produto de nicho antes do 7 de janeiro de 2015, subiu temporariamente para vários milhões de cópias. Por algum tempo, houve até uma edição alemã. Desde então, os números de vendas caíram novamente, e a edição alemã deixou de circular.

"O humor é algo suspeito para muitos, e isso não se aplica apenas aos muçulmanos", diz Riss, também conhecido como Laurent Sourisseau, sobrevivente do atentado e atual editor-chefe do jornal, que celebrará seu 50º aniversário em 2020 – em local secreto e sob proteção policial. A sátira continua sendo uma luta.

"Já desde a celeuma provocada pelas caricaturas dinamarquesas, e no mais tardar desde o atentado contra o Charlie Hebdo, as charges ganharam mais a atenção da opinião pública", diz Guillaume Doizy.

"As charges têm perdido espaço na imprensa, e 2019 foi um ano particularmente sombrio", lamenta Claire Carrard, presidente da associação Cartooning for Peace. Ela lembra que o renomado jornal New York Times não publica mais caricaturas em sua edição internacional desde meados de 2019, depois que um desenho foi considerado antissemita. Ele mostrava o presidente americano, Donald Trump, portando uma quipá e levando o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, como cachorro na coleira.

Na opinião de Guillaume Doizy, não é só por causa do debate sobre conteúdo que o New York Times suspendeu a publicação de charges. Para ele, o cartum é um gênero moribundo: "O desenho da imprensa era o meio dos séculos 19 e 20. Hoje as pessoas querem ver fotos e vídeos."

Diante da queda da circulação, as editoras tampouco querem irritar seus leitores e anunciantes – pois as shitstorms na internet estão hoje na ordem do dia. "O número de ataques verbais, ou seja, xingamentos, ameaças e intimidações aumentou muito, muito", confirma Juliane Matthey, assessora de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras.

Apesar de tudo, para Bernd Pohlenz a charge continua tendo um futuro: os desenhistas têm a vantagem de poder oferecer arte relativa a temas da atualidade, e encontram uma simbiose cada vez maior com centros culturais, galerias e museus: "Os caricaturistas são muito criativos nesse ponto."

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