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História

O espectro do Muro

J.P. Cuenca de Berlim
14 de novembro de 2019

As comemorações dos 30 anos da queda do Muro de Berlim fizeram pensar sobre os muros que ainda restam entre nós – hoje em cores muito mais complexas do que em tempos de Guerra Fria.

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Comemoração dos 30 anos da queda do Muro de Berlim no Portão de Brandemburgo
Para chegar à festa diante do Portão de Brandemburgo, foi preciso atravessar uma sucessão de bloqueios – e murosFoto: AFP/T. Schwarz

Para os alemães, o dia 9 de novembro é chamado de Schicksalstag – dia do destino. Entre outros eventos históricos, é a data de fundação da República de Weimar (1918), da Kristallnacht (1938), pogrom que muitos consideram o início ao Holocausto, e da queda do Muro de Berlim (1989).

No último sábado, exatos 30 anos depois da noite em que o Muro começou a ser derrubado, milhares de berlinenses e turistas rumaram ao Portão de Brandemburgo, palco de celebrações em três palcos anunciadas com fanfarra. Logo ao saltar da estação de metrô ao lado do portão, percebemos que não seria fácil chegar até lá. Entre nós e a festa havia uma sucessão de bloqueios – e muros.

Um esquema de segurança massivo, com caminhões de polícia anunciando desvios em alto-falantes num tom monocórdio, nos levou por um quilômetro de grades até Potsdamer Platz, e dali até o meio do Tiergarten – agora em caminhos escuros no meio do parque enlameado e sitiado, iluminado pelas lanternas dos telefones. Enquanto muitos escorregavam na lama, outros tentavam correr, sem sucesso.

Quando foi possível acessar a via principal, já no meio do caminho para a estátua dourada do Siegessäule, e começar finalmente a voltar para os agora mui distantes palcos, a multidão se deparou com uma mureta de cerca de um metro, que separava o parque da avenida. A maioria decidiu pular.

Uma mistura de vertigem com falta de elasticidade fez com que eu precisasse de ajuda para desastradamente ultrapassar a barreira. Uma senhora francesa riu e me disse: "Imagina na época, com soldados soviéticos apontando metralhadoras pra você?"

E talvez a proposta da organização fosse justamente essa, a de transformar a celebração da queda do Muro numa experiência interativa para o seu público, uma vez que logo encontramos um checkpoint que afunilou milhares de pessoas num denso empurra-empurra por cerca de 40 minutos.

J.P. Cuenca
O colunista J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

Se a ideia era revistar cada indivíduo e filtrar mochilas, para prever atos terroristas – o país está sob alerta permanente –, o esquema provocou uma perigosa concentração de pessoas e falhou nas revistas. Os alemães aguentaram estoicamente, os turistas chiaram baixinho, uma italiana atrás de mim chorou e alguém gritou, como Reagan num discurso aqui em 1987: "Tear down this wall!" Ninguém riu.

Depois de uma hora e 20 minutos, finalmente consegui entrar na área da festa a tempo de ver a Quinta de Beethoven regida pelo Daniel Barenboim – num telão, com som baixo, apoiado no balcão de um trailer e por trás da fumaça de um Schwenkgrill.

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Erguido em agosto de 1961, o Muro de Berlim não subiu apenas por aqui. Poucos meses depois de sua construção, foi fundado no Brasil o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), um think tank de propaganda anticomunista, financiado com dinheiro norte-americano.

Um dos filmes do IPES da época, exibido em cinemas, clubes e fábricas de todo o país, mostrava imagens do Muro sob uma locução em tom grave: "Hoje, a democracia sofre uma nova ameaça: o comunismo. Os habitantes de Berlim Oriental buscam a liberdade, procuram fugir de um regime totalitário."

Em setembro de 1961, entre a edificação do Muro a a criação do IPES, João Goulart, um moderado reformista de esquerda, assumiu a Presidência do Brasil. Menos de três anos depois, seria derrubado por um golpe militar arquitetado pelas Forças Armadas, empresários e, claro, membros do IPES, protagonistas do novo regime.

Lembro do instituto porque um de seus membros mais célebres estava em Berlim em novembro de 1989. No meio da confusão, um repórter de TV brasileiro aproximou-se dele e, ao ver que falava português, pediu uma declaração.

Rubem Fonseca, conhecido por não dar entrevistas a ninguém, deu sua única declaração para a TV brasileira até então, comemorando a queda do Muro. O repórter não percebeu que falava com o escritor brasileiro mais famoso – e avesso à imprensa – da época. Fonseca foi creditado como um transeunte comum.

No Brasil, a ditadura já havia encerrado seu ciclo formal de 21 anos – com o passar do tempo, o autor minimizou suas atividades no IPES e na implementação de uma ditadura militar, ao que a censura do regime a um de seus mais bem-sucedidos livros, Feliz Ano Novo, contribuiu bastante. Ainda assim, a escala da sua contribuição ao instituto segue despertando discussões acaloradas no meio literário brasileiro.

Em 1989, Fonseca declarou diante do Muro semidemolido: "Hoje não temos ideia de como vai mudar o mundo, mas será uma mudança severa." E realmente foi.

No entanto, apologistas da ditadura militar loteando Brasília e o discurso antieuropeu e nacionalista cada vez mais naturalizado por aqui, com a própria Alemanha ainda curando as chagas da sua Reunificação e tendo que lidar com um crescente discurso anti-imigração, me fazem pensar que a mudança talvez não tenha sido severa o suficiente. O espectro do Muro e da divisão persiste – em cores muito mais complexas do que em tempos de Guerra Fria.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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