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SociedadeGlobal

O avanço além-fronteiras da teoria da conspiração QAnon

Ines Eisele
25 de setembro de 2020

Antes restrita aos EUA, delirante teoria sobre um "Estado Profundo" comandado por pedófilos satanistas se espalha também pela Europa, onde se mistura ao movimento contra medidas para conter a pandemia.

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Mulher exibe símbolo da teoria QAnon durante protesto contra as medidas anticoronavírus em BerlimFoto: Reuters/A. Schmidt

Um grupo se destacava em meio às milhares de pessoas que protestavam no centro de Londres contra as medidas para combater a covid-19, no último sábado (19/09): os propagadores de teoria da conspiração QAnon. Entre outras coisas, eles gritavam "Escolha o seu lado" e exibiam cartazes que diziam "Liberdade em vez de medo" e "Acabem com o tráfico de crianças".

Este último é o carro-chefe do QAnon. Segundo o movimento que surgiu na Internet, uma elite pedófila e satânica internacional está sequestrando e abusando de crianças como forma de obter uma droga rejuvenescedora. Hillary Clinton e o investidor George Soros pertenceriam a essa elite e estariam tentando dominar o mundo, entre outras coisas.

De acordo com os seguidores dessas teorias, esses pedófilos dirigem uma espécie de governo secreto, também conhecido como "Estado Profundo", que controlaria a política dos EUA e do mundo inteiro nos bastidores. Por outro lado, um lado "bom", representando pelo presidente dos EUA, Donald Trump, estaria lutando contra o "Estado Profundo".

O credo central do QAnon sempre está em evolução, buscando fontes em outros teorias da conspiração, muitas vezes de origem antissemita. A parte envolvendo crianças sendo sequestradas ecoa antigas teorias da conspiração da Idade Média que acusavam os judeus de usarem o sangue de pequenos cristãos em rituais.

"O QAnon é o tofu dos movimentos online. Ele pode ter gostos diferentes, dependendo de como você o mistura", afirma Jakob Guhl, do Instituto para o Diálogo Estratégico (ISD, na sigla em inglês), um think tank baseado em Londres que estuda questões envolvendo segurança global e risco político.

Alt-Right, Reichsbürger e esoteristas

O exemplo mais recente desse "tofu" é o amálgama do QAnon com o movimento que contesta as medidas governamentais contra a covid-19 e que acredita que o vírus é apenas uma invenção para manipular a população a tomar vacinas.

Essa aliança ficou visível em protestos em vários países, onde ativistas antivacinação, seguidores de doutrinas esotéricas e extremistas de direita se misturaram com os seguidores do QAnon.

De acordo com um estudo do ISD, a crise global da pandemia deu um forte impulso ao movimento. De março a junho deste ano houve mais postagens relacionadas ao QAnon no Twitter, Facebook e Instagram do que em qualquer período desde que a teoria da conspiração surgiu, em 2017. A narrativa está cada vez mais desempenhando um papel fora do seu país de origem, os EUA.

"Mesmo que a grande maioria do conteúdo ainda seja distribuída nos Estados Unidos, a dimensão internacional está crescendo. O Reino Unido foi, recentemente, o país onde o conteúdo QAnon foi o segundo mais compartilhado e suas hashtags tiveram a segunda maior prevalência", diz Guhl.

Em seguida aparecem Canadá e Austrália. A Alemanha aparece em quinto lugar, o que chama a atenção, como aponta o pesquisador Guhl, porque "o QAnon é muito focado nos EUA e usa o inglês".

Verschwörungsmythos QAnon | US-Präsident Donald Trump
Para os adeptos do movimento, Donald Trump seria um "salvador" que está tentando combater o "Estado Profundo"Foto: Evan Vucci/AP Photo/picture-alliance

"Especula-se que isso seja muito em comparação com outros países que não falam inglês. A disseminação na Alemanha se deve ao fato de que já havia uma cena que abraçava narrativas de conspiração. E há ainda movimentos como o Reichsbürger, com o qual o QAnon conseguiu se encaixar bem."

Durante a pandemia, o QAnon também conquistou seguidores notórios na Alemanha, como o músico Xavier Naidoo e o chef vegano Attila Hildmann, que passaram a espalhar teses do movimento entre seus fãs.

Guhl estima que "o núcleo duro de seguidores" na Alemanha chegue a algumas centenas de milhares. No entanto, há ainda mais pessoas que podem demonstrar alguma receptividade ao conteúdo do QAnon ou que já ouviram falar de alguns dos elementos da teoria da conspiração.

Q, o suposto agente do serviço secreto

Em outubro de 2017, um usuário anônimo chamado "Q" colocou o "mito fundador" da teoria da conspiração em circulação no fórum online 4Chan. Ao fazer isso, ele tomou elementos do chamado Pizzagate, uma teoria conspiratória que surgiu durante a campanha eleitoral americana de 2016 e que diz que uma pizzaria na capital, Washington, era usada para produzir pornografia infantil. Os propagadores da mentira ainda sustentaram que Hillary Clinton estava envolvida.

Na época, "Q" alegou que trabalhava como agente de inteligência e que tinha informações de que Clinton seria presa em breve. Isso nunca ocorreu, mas seus posts continuaram a ganhar popularidade. Hoje eles podem ser encontradas facilmente no Telegram, Whatsapp, Facebook, Twitter, Instagram e Youtube.

As narrativas do QAnon baseiam-se em coisas que são relevantes localmente. O movimento funciona como "uma espécie de mito de metaconspiração" que integra outras coisas, de acordo com Guhl.

Na Alemanha, elementos do movimento podem se misturar à opinião dos Reichsbürger. No Reino Unido, à dos apoiadores do Brexit. Seguidores do QAnon apareceram em protestos pela saída do Reino Unido da UE – alguns deles veem Boris Johnson como um aliado, a exemplo do suposto "salvador" Trump.

Verschwörungsmythos QAnon |  Protest in München
Seguidora do movimento num protesto em Munique, AlemanhaFoto: Sachelle Babbar/ZUMA Wire/Imago Images

Em sua coluna semanal na revista Der Spiegel, o especialista em internet Sascha Lobo analisa a característica da teoria QAnon de ser regularmente atualizada, como se fosse composta por peças de um quebra-cabeça. Ele considera isso o ingrediente mais importante para o sucesso da "ideologia de conspiração mais bem-sucedida e ameaçadora da rede".

Segundo Lobo, a conspiração traz à tona o chamado efeito Ikea, que faz com que as pessoas considerem um móvel – ou, no caso do QAnon, o mito – mais valioso e genuíno se elas mesmas o montaram. E aí pouco importa se a prateleira – o mito – acabe saíndo meio torta.

Seguidores do QAnon em posições de poder?

Por mais absurdo e delirante que possa parecer o mito QAnon, ele é muito mais do que apenas um fenômeno inofensivo da internet. Além da presença em protestos pelo fim das medidas contra a covid-19, Brexit ou contra a violência sexual contra crianças, o movimento já se espalhou para a vida analógica de outras maneiras. Depois que alguns seguidores planejaram e executaram atos de violência, o FBI declarou o QAnon uma potencial ameaça terrorista em 2019.

Na Alemanha, o agressor de Hanau – que matou dez pessoas em fevereiro – resumiu sua visão de mundo racista e conspiratória em um panfleto. Embora ele não tenha mencionado o QAnon pelo nome, ele falou, entre outras coisas, sobre um serviço secreto global que controlaria as pessoas remotamente. 

Não são apenas a radicalização e a violência que representam um perigo. O especialista Guhl lembra que as eleições nos EUA, em novembro, serão palco de candidaturas de apoiadores do QAnon, que concorrerão para o Congresso tanto pelo Partido Republicano quanto de maneira independente. "São pessoas que acreditam que uma elite secreta de abusadores de crianças quer derrubar o presidente Trump. Caso sejam eleitos, elas podem vir a ter algum impacto sobre leis."

O Facebook e o Twitter bloquearam milhares de contas de apoiadores do movimento nos últimos meses. Na semana passada, Felix Klein, o comissário do governo alemão para lidar com o combate ao antissemitismo, pediu para que as empresas responsáveis por aplicativos de mensagem agissem de maneira mais enérgica para conter a disseminação do QAnon.

Guhl acha que essas medidas estão corretas, mas aponta que o problema fundamental continuam sendo os algoritmos das redes sociais, que favorecem conteúdos polêmicos ou controversos. Além disso, afirma, é importante fortalecer mecanismos para lidar com conteúdos de mídia social e informações falsas – especialmente em tempos de pandemia.