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Christine Lagarde assume BCE em tempos duros

Uwe Hessler av
31 de outubro de 2019

A primeira mulher a liderar o BCE herda de seu antecessor uma caixa de ferramentas quase vazia para enfrentar os problemas monetários e financeiros da zona do euro. A seu favor, competência diplomática e de negociação.

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Christine Lagarde e Mario Draghi
Christine Lagarde (esq.) recebe de Mario Draghi o bastão simbólico do BCEFoto: Reuters/Paolo Giandotti/Presidential Palace

Ao lhe passarem simbolicamente o bastão para encabeçar o Banco Central Europeu (BCE), durante uma cerimônia em Frankfurt nesta segunda-feira (28/10), Christine Lagarde também recebeu o sino dourado utilizado para chamar à ordem os tomadores de decisão da instituição.

Perante os recentes resmungos entre os membros do Conselho de Governo do BCE, em especial a Alemanha, Holanda e Áustria, contra a continuação da política monetária ultra relaxada do banco, esse presente poderá ser bem útil.

Além disso, a primeira mulher à frente do banco da zona do euro herda uma nova rodada de estímulo monetário que seu antecessor, Mario Draghi, conseguiu fazer aprovar em suas semanas finais, em parte na esperança de amenizar a transição de Lagarde para o cargo.

Impulsionado por sua promessa de 2012, de fazer "o que seja necessário" para salvar do colapso a moeda única europeia, Draghi situou as taxas de juros bem fundo no terreno negativo e bombeou trilhões de euros para a economia da eurozona, através de um programa de flexibilização quantitativa (QE, na sigla em inglês).

No entanto, uma década de combate à crise quase esgotou a caixa de ferramentas do BCE e abriu o caminho para uma dissensão sem precedentes entre os Estados-membros da eurozona que sustentam essa política e os que estão perdendo a fé numa flexibilização ainda maior.

Tudo isso significa que as qualidades de liderança de Lagarde serão testadas já a partir de 1º de novembro, o primeiro dia de seu mandato de oito anos diante da instituição. Porém muitos que trabalharam com ela na arena da diplomacia internacional estão convencidos que ela está à altura da função.

Um deles é Nathan Sheets, ex-subsecretário de assuntos internacionais no Tesouro dos Estados Unidos: "Em toda sua carreira, Lagarde tem sido uma sintetizadora, uma mediadora e árbitra em sua maneira de agir na comunidade internacional, e é assim que eu acharia que ela vai dirigir o BCE."

Escolha anticonvencional

Ao contrário de Mario Draghi, Ph.D. de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Lagarde não é economista e nunca foi forçada a elaborar políticas monetárias. Depois de estudar Direito em Paris, ela fez mestrado em ciência política em Aix-en-Provence, no sul da França. Rejeitada por duas vezes pela elitista École Nationale d'Administration, sediada em Paris, entrou para a firma de advocacia Baker McKenzie em 1981.

Lá, passou duas décadas como advogada, antes de se tornar presidente. Em 2005 retirou-se para trabalhar no governo francês. O presidente Nicolas Sarkozy nomeou-a primeira mulher à frente do Ministério de Finanças, posição em que conquistou respeito, ao guiar o país através das turbulências da crise financeira de 2008/09.

Em 2011, sua carreira entrou na política global, ao se tornar presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI). Seus talentos de diplomacia e negociação se tornaram especialmente evidentes durante a crise financeira da Grécia, em 2012, quando a assim chamada "troica", formada pelo FMI, BCE e União Europeia, estabeleceu com Atenas o multibilionário acordo de resgate que evitou uma ruptura da eurozona.

Lagarde afirmou certa vez que "odeia matemática", o que denota uma certa falta de expertise técnica, no tocante a definir políticas monetárias. Para tal, ela provavelmente confiará no ex-chefe do BCE Philip Lane, nomeado seu economista-chefe em meados de 2019. Por sua vez, ela se concentrará em elaborar soluções diplomáticas para problemas emergentes, marcando uma guinada em direção a um banco central mais político.

Numa entrevista à Bloomberg em setembro, Lagarde afirmou que ia "começar com trabalho de equipe", deixando espaço para discussões. Uma vez que uma decisão tenha sido tomada, contudo, ela espera que os tomadores de decisões "se movam juntos". Após hesitação inicial em aceitar o cargo no Banco Central Europeu, ela decidiu que possuía as habilidades diplomáticas, senso político e compreensão para assumi-lo, acrescentou.

Desafios a perder de vista

Agora Christine Lagarde supervisionará a segunda maior moeda do mundo, numa zona econômica tão diversa, que uma política monetária "tamanho único" por vezes parece má ideia.

Um dramático cisma público ocorreu em setembro, quando o BCE concordou em retomar as compras de títulos públicos, num esforço para dar uma arrancada no crescimento econômico minguante, e estimular a inflação até um patamar pouco abaixo dos 2%: no que se considera a maior dissensão nas duas décadas de história do BCE, mais de um terço dos tomadores de decisões objetou à iniciativa.

Chefes de bancos centrais de economias economicamente conservadoras do Norte se opuseram ao pacote de estímulo de Draghi, enquanto países do sul o apoiaram. A crítica mais ferrenha partiu da Alemanha, onde o BCE é sistematicamente acusado de penalizar os poupadores do país, enquanto premia Estados meridionais esbanjadores.

Marcel Fratzscher, presidente do Instituto Alemão de Pesquisa Econômica (DIW), confirma que as decisões do BCE muitas vezes geraram reações contrárias de políticos e mídia. "Minha grande esperança com Lagarde é que ela tenha mais sucesso em comunicar ao cidadão comum qual são os benefícios das políticas do BCE para ele, mesmo que sua poupança não renda nada."

Mesa com executivos e políticos à volta
"Troica" se reúne para discutir crise da Grécia, em 22/06/2015Foto: Reuters/E. Durand

Nos últimos anos, Lagarde conseguiu estabelecer relações estreitas com diversos líderes poderosos da Europa, inclusive a chanceler federal Angela Merkel e o ministro de Finanças da Alemanha, Olaf Scholz. Consta também que o presidente da França, Emmanuel Macron, confia nela. Mas cabe ainda ver se esse apoio bastará para conseguir que governos com folga orçamentária gastem mais, principalmente a Alemanha.

"Por que não usar esse superávit tributário e investir na infraestrutura. Por que não investir em educação, em inovação, para ter um reequilíbrio melhor, diante dos desequilíbrios atuais", comentou a nova chefe do BCE à rádio francesa RTL, na quarta-feira.

Esse apelo vem num momento em que diminuem dia a dia as capacidades do banco europeu de impulsionar o entravado crescimento na eurozona. Já há estimativas de que em breve não haverá mais de títulos e ativos que ele possa comprar sob as regras atuais. E, com taxas de juro já em zero – para depósitos do BCE, ainda menos, a -0,5% – crescem os temores de que a política monetária já esteja sem munição antes mesmo da próxima recessão.

"Christine Lagarde tem que executar esse delicado número de equilibrismo, dizendo haver mais que ela pode fazer, ao mesmo tempo em que pede a outros – inclusive autoridades fiscais – que ajudem", comenta Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI.

Como se não tivesse suficiente com que se ocupar, alguns dias atrás Lagarde declarou-se também interessada em questões como desigualdade, maior poder feminino nas finanças e o impacto econômico da mudança climática, todas relevantes para as políticas do Banco Central Europeu.

No entanto, indagada recentemente se também faria "todo o possível" para salvar o euro mais uma vez, admitiu que o BCE não possui uma varinha mágica, e que ela mesma não é nenhuma fada.

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