1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Acabou a "liberdade dos tolos"?

18 de junho de 2020

Ativistas pró-governo como os 300 do Brasil se sentiram livres para afrontar a democracia por semanas. Acreditavam que as Forças Armadas estavam do lado deles e que podiam fazer o que bem entendessem. Estavam errados?

https://p.dw.com/p/3dzfw
Manifestantes pró-Bolsonaro e a favor do fechamento do Congresso e do STF em Brasília
Manifestantes pró-Bolsonaro e a favor do fechamento do Congresso e do STF em BrasíliaFoto: Getty Images/A. Anholete

Li, estes dias, na coluna de Yascha Mounk, na Folha de S.Paulo, que o "Brasil já é uma democracia sob supervisão militar". Concordo em parte, como explicarei a seguir.

Para começar: lotear os ministérios com militares, em vez de quadros técnicos, como originalmente prometido pelo presidente Jair Bolsonaro, é um sinal claro dessa supervisão. O mesmo vale para declarações dúbias como a do ministro-chefe da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos, de "não esticar a corda". Parece que há militares da ativa se confundindo sobre o papel dos militares. Eles são do Estado, e não um braço armado do governo. E servem para proteger a democracia e os cidadãos, sendo eles "de esquerda" ou "de direita".

Afastar o presidente do cargo, por meio de uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou de um impeachment, faz parte do jogo democrático. E não de uma tentativa de "esticar a corda". Só para lembrar que a ex-presidente Dilma Rousseff foi removida do poder por causa de "pedaladas fiscais" e sob o aplauso – e até ofensas – do então parlamentar Jair Messias Bolsonaro.

No meu entender, o impeachment de Dilma foi um jogo sujo, mas, obviamente, dentro das regras democráticas. O impeachment serve como saída de emergência no sistema presidencial. No sistema parlamentar, a saída é mais fácil e menos dolorosa: basta o parlamento eleger um novo primeiro-ministro e acabou. Sem drama.

Mas entendo que seja mais fácil fazer o impeachment de uma presidente da esquerda. É impensável fazer o impeachment de um presidente "de direita", que tem centenas de militares no seu governo? A direita sempre possui uma certa Narrenfreiheit, palavra alemã maravilhosa, que significa "liberdade dos tolos". É só olhar para a turma dos 300 do Brasil, que fizeram todo mundo de bobo na Esplanada dos Ministérios por semanas. Acamparam na Esplanada, xingaram e ameaçaram os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e os congressistas em plena Praça dos Três Poderes, copiaram as marchas noturnas com tochas dos nazistas e supremacistas brancos e até "bombardearam" o STF com fogos de artifício. E, ainda por cima, posaram com suas armas para fotos.

Nunca um grupo da esquerda teria tido tal Narrenfreiheit. E nunca um policial militar teria levado um desaforo de um ativista "da esquerda" como levou de Sara Giromini "Winter" no dia da remoção do acampamento dos 300 do Brasil. Aposto que a Sara estava lançando sua candidatura para 2022 ao xingar o policial. Igual fez seu ídolo, o então deputado Bolsonaro, que lançou sua candidatura para 2018 ao ofender Dilma na votação do impeachment em 2016.

A República sempre teve uma certa cegueira no olho direito. Afinal de contas, foram os militares que proclamaram a República, em 1889, e não forças políticas. (Ou será que os militares se enxergam como força política? Isso explicaria muita coisa.) Por isso, tenho que discordar de Yascha Mounk num ponto: o Brasil sempre esteve sob a supervisão militar.

Pode-se traçar uma linha desde a Proclamação da República, do começo da era Vargas, com a Revolução de 1930, passando pelo fim da presidência dele, pressionado pelos militares, e até o golpe de 1964. Desde 1988, o Brasil tenta tirar a supervisão militar. Mas lembramos das notas emitidas por militares, no fim do governo Dilma e na ocasião de uma suposta soltura do ex-presidente Lula da prisão, quando militares das mais altas patentes tomaram um lado.

Agora, uma parte do aparato militar faz parte do governo Bolsonaro. Nas manifestações do dia 7 de junho, em Brasília, Augusto Heleno Ribeiro Pereira, general da reserva do Exército e atual ministro-chefe do Gabinete da Segurança Institucional, fez questão de cumprimentar os policiais que fizeram o cordão de isolamento entre os manifestantes "da esquerda" e os bolsonaristas. Foi festejado como herói pelos "blogueiros" bolsonaristas, que seguem fielmente a filosofia dos Jedi de "Guerra nas Estrelas" que diz: "Aliada minha é a Força, e poderosa aliada é." Eles têm muitos motivos para acreditar que "a força está com eles".

Minha experiência de manifestações é que as forças policiais não hesitam em lançar gás e bombas de efeito moral contra manifestantes "da esquerda", além de balas de borracha e cacetadas. Nunca se atreveriam a fazer isso com manifestantes do outro lado.

Sobrou agora para a Justiça enquadrar os 300 do Brasil e a militância pró-governo. Na manifestação do dia 7 de Junho, ouviam-se reclamações por parte dos manifestantes bolsonaristas, que tinham a plena liberdade de se aglomerar na Praça dos Três Poderes (algo que os manifestantes "da esquerda" não podiam). Compararam as buscas e apreensões, feitas pela Polícia Federal nas casas de apoiadores do presidente Bolsonaro à perseguição que os judeus sofreram na Europa nazista. Chamaram o STF e o Congresso de "comunistas" e conclamaram uma "intervenção militar". Tudo fora da lei e do contexto histórico.

Resta saber se a "liberdade dos tolos" agora acabou. E o que o presidente Bolsonaro quis dizer, quando comentou as investigações contra políticos bolsonaristas que supostamente financiaram os atos dos 300 do Brasil com a seguinte frase: "Está na hora de tudo ser colocado no seu devido lugar."

--

Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

 

Pular a seção Mais sobre este assunto
Pular a seção Mais dessa coluna

Mais dessa coluna

Mostrar mais conteúdo