"Reconverter Santa Sofia em mesquita é populismo"
24 de julho de 2020Nesta sexta-feira (24/07), a Basílica de Santa Sofia (Hagia Sophia) reabriu para orações muçulmanas, pela primeira vez em 86 anos. Trata-se da primeira cerimônia realizada no monumento mais visitado de Istambul desde que o local foi convertido de museu em mesquita, através de um controverso decreto presidencial.
Apesar das atuais medidas de distanciamento social ditadas pela pandemia de coronavírus, o evento atraiu centenas de fiéis do lado de fora da antiga igreja bizantina do século 6º.
Em 10 de julho, um decreto do presidente Recep Tayyip Erdogan o edifício ao culto muçulmano, despertando críticas ao redor do mundo. Uma destas vozes dissidentes é a de Orhan Pamuk, um dos romancistas mais prestigiados da Turquia e Prêmio Nobel de Literatura de 2006.
Ele lamenta o destino da famosa obra arquitetônica, Patrimônio Mundial da Unesco desde 1985, considerando-o um ato populista que desfaz a imagem laica de seu país construída por Kemal Atatürk, fundador da moderna república turca. Em Istambul, Pamuk concedeu uma entrevista exclusiva para a DW.
DW: A grande Hagia Sophia, aqui em Istambul, um museu nos últimos 86 anos e parte do patrimônio mundial da UNESCO, agora é novamente uma mesquita e irá ecoar orações muçulmanas. Como isso o faz se sentir? O que tem passado por sua cabeça nos últimos dias?
Orhan Pamuk: Em 1934, o fundador da República Turca, o grande Kemal Atatürk, converteu a Santa Sofia, ou Ayasofya Cami, num museu. Por que ele fez isso? Ele queria dizer ao mundo moderno, especialmente ao mundo ocidental, que "essa é uma grande arquitetura ortodoxa grega, a maior catedral grega de todas". "Agora quero convertê-la em museu, para dizer ao resto do mundo 'nós, turcos, somos seculares'. Queremos impor o laicismo francês ao nosso Estado e integrar a grande cultura e civilização europeia." Essa foi a decisão que ele tomou. Agora eles a estão desfazendo.
A Santa Sofia é extremamente importante tanto para muçulmanos como para cristãos como museu, como o senhor mencionou, era um espaço secular. Sendo assim, o que a decisão do presidente turco de transformá-la novamente em mesquita significa para a Turquia?
Significa simplesmente que não respeitamos mais o secularismo de Kemal Atatürk. Queremos ser populares, queremos ser populistas, queremos fazer experimentos com o islã popular e dizer ao resto do mundo que agora não estamos muito felizes com o Ocidente. Não é uma mensagem de que eu goste. Eu a critico, mas estou surpreso que a oposição aqui não a desafie. Por quê? Porque eles estão agindo e pensando que se trata de uma decisão muito popular. Infelizmente é uma decisão popular acolhida pelo povo turco. E o destino da Santa Sofia deve ser concedido pelo povo turco. Eu também sou cidadão turco e, como muitos milhões de laicos, sou contra. Mas nossas vozes, infelizmente, não são ouvidas.
E por que os descontentes com essa decisão não estão se manifestando?
Uma razão por que não estão levantando a voz é que não há liberdade de expressão na Turquia para contestar isso. Infelizmente eles também têm medo de dizer 'essa é a tradição secular de Kemal Atatürk. Por favor, não a mudemos'. Isso é importante no sentido de que a nação turca se distingue de outras nações muçulmanas pelo fato de sermos seculares e o resto do mundo saber disso.
Todo turco, mesmo que seja eleitor do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), a sigla governista e islâmica, se orgulha secreta ou abertamente de ser diferente de outras nações muçulmanas, dizendo "como os europeus, nós somos seculares", e essa é a originalidade da Turquia . Agora estão nos tirando esse orgulho de sermos simultaneamente muçulmanos e seculares. Esse era o projeto de Kemal Atatürk.
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