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Queremos liberdade! Por que então defender ditadores?

Thomas Milz
Thomas Milz
16 de março de 2022

Não entendo como parte da esquerda pode defender regimes autoritários como os de Putin, na Rússia, e Ortega, na Nicarágua. Quem reclama para si direitos democráticos deveria defender o mesmo em outras partes do mundo.

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Mural com imagem de Vladimir Putin vandalizado após invasão da Ucrânia, com a palavra "assassino" pichada, em Belgrado, Sérvia
Mural com imagem de Vladimir Putin vandalizado após invasão da Ucrânia, com a palavra "assassino" pichada, em Belgrado, SérviaFoto: ZORANA JEVTIC/REUTERS

É assustador ver regimes autoritários como os da Nicarágua ou da Rússia serem defendidos. A democracia não era um valor universal, principalmente para a esquerda?

Cresci na Europa ocidental durante os anos 80, no auge da Guerra Fria. Na escola, os professores passavam vídeos em que se explicava como se comportar durante um ataque com bombas atômicas. Vindo da União Soviética. E no cinema passavam filmes que falavam sobre um mundo pós-destruição nuclear. Tudo muito assustador para uma criança como eu.

A única coisa que nos salvaria eram as bombas atômicas dos Estados Unidos, ou melhor: a "promessa" de que os EUA iriam responder a um ataque russo na mesma moeda. E funcionou: a Guerra Fria nunca esquentou.

Com meu pai, eu ia até a fronteira das duas Alemanhas, observando de longe os soldados da Alemanha Oriental que vigiavam aquele corredor da morte, a fim de não deixar ninguém passar do lado "comunista" para o lado "capitalista". Cada família tinha amigos ou parentes no outro lado, e todos sabiam de histórias de compatriotas tentando fugir da ditadura "comunista". Poucos conseguiam.

Para aos do outro lado, a história vinha sendo cruel: depois de 12 anos de ditadura de Hitler, tiveram que engolir ainda mais 40 anos de ditadura soviética. Lembro-me de um amigo da minha avó, preso durante o Terceiro Reich, depois prisioneiro de guerra na Rússia, para então ser preso na Alemanha Oriental. Uma vida destruída pelo cruel caminho da história.

Desejo de liberdade 

Para muitos europeus que conheço, como amigos poloneses e búlgaros, a queda da União Soviética foi um alívio, a melhor coisa que poderia acontecer. A partir de então conseguiam estudar e trabalhar em outros países da União Europeia, viajando pelo mundo, matando toda aquela vontade que se acumulara durante a Guerra Fria. Liberdade, ar para respirar! Finalmente.

Não cresci na América Latina ou no Brasil. Só cheguei aqui quando já tinha 26 anos, no final dos anos 90. Mas fiz muitas entrevistas com pessoas que lutavam contra as ditaduras latino-americanas. E a maioria dessas cruéis ditaduras foi apoiada pelos Estados Unidos, durante a Guerra Fria. Os Estados Unidos que libertaram os alemães do monstro Hitler e que salvaram a gente de um ataque russo, aqui causaram muito sofrimento. Entendo que muitos latino-americanos desconfiem dos Estados Unidos.

Mas isso não os abstém da obrigação de refletir e de se atualizar. Havia muitos argumentos para derrubar ditadores como Fulgencio Batista em Cuba, em 1959, ou Anastasio Somoza na Nicarágua, em 1979. Mas nada justifica defender, em pleno 2022, a falta de liberdades impostas pelos regimes que sucederam àqueles ditadores. Hoje em dia, falo com ex-combatentes sandinistas que me dizem que Daniel Ortega se transformou num ditador tão cruel - ou até mais cruel - que o próprio Somoza.

Não entendo como parte da esquerda latino-americana pode defender esses regimes. Como, também não entendo como defendem o regime russo de Vladimir Putin. Um regime que cala a oposição, envenenando ou prendendo-na, botando ativistas gays na prisão e desrespeitando direitos fundamentais dos seus próprios cidadãos. Além de achar ter o direito de ditar o modo de vida de povos que habitam países vizinhos.

Entendo o desejo de pessoas do Leste Europeu de levar uma vida de liberdade de escolher, liberdade de viajar, de viver em paz onde quiser, ou melhor dizendo, de se tornar um cidadão da União Europeia. Voltar para o colo esmagador da Rússia seria inaceitável!

Mas é difícil encontrar pessoas aqui no Brasil que levem em conta a vontade dos povos e países do Leste Europeu sobre como viver a própria vida. São brasileiros que defendem a própria liberdade - e com toda a razão -, mas não dão o mesmo direito às pessoas no Leste Europeu.

Esquerda deveria ter mais capacidade de refletir

Não espero nada do campo da extrema direita bolsonarista. Bolsonaro gosta automaticamente de líderes tipo macho alfa que topam tirar foto com ele, como Donald Trump ou Vladimir Putin. No tabuleiro das ideologias, ele não sabe se é para jogar com as figuras brancas ou pretas. Não tem bússola ideológica ou norte moral nenhum.

Mas da esquerda eu esperava mais. Mais capacidade de refletir e abstrair. De se colocar no lugar do outro. Vladimir Putin mudou a Constituição russa para ficar no poder até 2036. Seriam 37 anos no poder, pois assumiu em 1999. E o líder da oposição Alexei Navalny corre o risco de passar o resto da vida na prisão, depois de sobreviver a uma tentativa de envenenamento.

Na Nicarágua, Daniel Ortega está no poder desde 2006 e agora tem mandato até 2026. Mandou condenar os políticos da oposição para que fiquem uma eternidade na prisão.

Até quando haverá apoio a esses regimes? Aqueles que reclamam para si direitos democráticos têm de defender os direitos democráticos em outras partes do mundo. Afinal de contas, não existia um compromisso com uma democracia universal? Cadê?

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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Thomas Milz
Thomas Milz Jornalista e fotógrafo
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Realpolitik

Depois de uma década em São Paulo, Thomas Milz mudou-se para o Rio de Janeiro, de onde escreve sobre a política brasileira sob a perspectiva de um alemão especializado em Ciências Políticas e História da América Latina.