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Os prisioneiros eternos de Guantánamo

11 de janeiro de 2022

A prisão militar americana na ilha de Cuba completa 20 anos. Apesar de várias denúncias de tortura e abusos aos direitos humanos, a situação no campo de prisioneiros permanece a mesma. Uma equipe da DW visitou o local.

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Prisão na base de Guantánamo
Prisão na base de Guantánamo foi criada no governo Bush logo após os ataques de 11 de setembro de 2001Foto: DOD US Navy/picture-alliance/dpa

Um relato típico de Guantánamo é algo assim: Mohamedou Ould Slahi passou 14 anos atrás das grades. Ele foi torturado por 70 dias e interrogado 18 horas por dia durante três anos.

Ele morava na Alemanha antes de ser preso, e era suspeito de ser membro da rede Al Qaeda e de ter um papel central nos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, apesar de não haver nenhuma prova contra ele.

Ele jamais foi indiciado ou condenado durante os 14 anos que passou em Guantánamo. O mauritano, agora com 50 anos, acabou sendo libertado, mas jamais foi compensado após sua parte de sua vida ter sido roubada.

A advogada Nancy Hollander considera este o seu caso mais notável. Uma história que deve chegar em breve às telas dos cinema.

O crime de Slahi foi ter participado de um campo de treinamento terrorista no Afeganistão e ter atendido uma chamada no telefone via satélite de Osama bin Laden. Isso, é claro, não contribui para sua imagem, diz a jurista, mas também não basta para que ele seja indiciado.

Guantánamo transformou os Estados Unidos em "um país que não respeita o Estado de direito”, afirma a advogada.

Cena do filme "O mauritano"
Cena do filme "O mauritano", que retrata os anos em que Mohamedou Ould Slah esteve preso em GuantánamoFoto: Graham Bartholomew/tobis Film/dpa/picture alliance

Ela fala em uma "situação catastrófica”, que não se aplica somente aos 13 detentos que estão presos sem serem formalmente acusados e que aguardam há anos sua libertação, mas também aos supostos autores dos atentados de 11 de setembro, os chamados "prisioneiros eternos”, que ainda aguardam julgamento, 20 anos após os ataques. 

Suspensão sistemática do Sistema legal

A ausência do Estado de direito não é algo acidental, senão um objetivo do governo americano sob a presidência de George W. Bush, afirma a especialista da Anistia Internacional (AI), Daphne Eviatar.

"O governo Bush criou uma prisão offshore precisamente para contornar as regras do sistema legal dos Estados Unidos”, conclui Eviatar. Ela denunciou extensivos abusos dos direitos humanos em Guantánamo em um relatório da AI que relata a detenção por tempo indeterminado de presos não indiciados, além da prática de tortura.

Vista aérea da base de Guantánamo
Vista aérea da base naval dos EUA na Baía de GuantánamoFoto: Oliver Sallet/DW

Apesar de não existirem evidências públicas que comprovem isso, Eviatar afirma que diversas investigações, incluindo uma do Comitê de Inteligência do Senado americano, documentam a tortura brutal de dezenas de homens em Guantánamo.

A base americana na Baía de Guantánamo, num enclave em Cuba, existe há mais de 100 anos. O local foi expandido para abrigar um centro de detenção em janeiro de 2002, poucos meses após os ataques de 11 de setembro e, desde então, ganhou uma notoriedade dúbia.

Anthony Natale, advogado de Abd al-Rahim al-Nashiri, suspeito de terrorismo e de ligação com a Al Qaeda, falou abertamente sobre sua decepção com Guantánamo. "Abandonamos tudo o que fazia deste um país livre, com direitos iguais para todos.”

Censura à imprensa

Qualquer um que queira ver Guantánamo com seus próprios olhos deve superar vários obstáculos. O primeiro destes é o espaço aéreo cubano, o qual os voos semanais de Washington não têm permissão para atravessar. Os aviões devem contornar o país pelo leste e não podem tomar o rumo da base militar até a aproximação final.

Do alto, se tem a primeira visão da base, de reputação contestada. No sopé de uma cadeia de montanhas está a Baía de Guantánamo; a oeste, o aeroporto, a leste, a base naval, o tribunal militar de Camp Justice e o campo de prisioneiros.

Tribunal militar americano "Camp Justice"
Tribunal militar americano "Camp Justice" na base de GuantánamoFoto: Mandel Ngan/EPA/dpa/picture-alliance

A permissão para visitar o local vem com pouca antecedência, após semanas de verificações de segurança. Antes da partida, deve-se assinar um termo concordando com as "regras básicas”. Estas estipulam o que os jornalistas devem esperar em Guantánamo: Nenhuma liberdade de movimento e, sobretudo, nenhuma liberdade de imprensa.

Não se pode nem mesmo ver a prisão do lado de fora. Todas as informações vindas de dentro estão sujeitas a um rígido sigilo, o que é inevitavelmente profundamente frustrante para os advogados dos detentos.

Nancy Hollander lutou durante sete anos nos tribunais para conseguir a permissão para a publicação do "Diário de Guantánamo”, escrito por seu cliente, Mohamedou Ould Slahi.

Vida à sombra da tortura

Quando se fala em Guantánamo, vêm à mente, em primeiro lugar, a tortura e os arames farpados. Na verdade, a prisão e o tribunal militar são apenas uma pequena parte do local. Na maior parte, a base naval se assemelha a uma cidade americana.

Eles nos mostram a nova escola com tecnologias de ponta, que custou 65 milhões de dólares e foi aberta recentemente, onde 220 crianças de todas as idades podem ter uma infância mais possivelmente próxima do normal.

Área residencial da base de Guantánamo
Área residencial da base militar de GuantánamoFoto: Oliver Sallet/DW

Isso, apesar de o suposto autor dos atentados de 11 de setembro estar aguardando julgamento a apenas cinco quilômetros de distância. O diretor da escola, Emilio Garza, afirma que o campo de prisioneiros ainda não consta no currículo escolar. 

Há um supermercado e áreas residenciais que se assemelham a um idílico subúrbio americano, além da única lanchonete McDonalds em solo cubano. A rádio GTMO toca pop latino-americano. Em uma loja de souvenires os visitantes podem comprar camisetsa com os dizeres Rockin' in Fidel's backyard ("Agitando no quintal de Fidel”). Em Guantánamo, o ex-ditador cubano ainda assombra.

A apresentadora Annaliss Candelaria, de uniforme camuflado em frente ao microfone, apresenta o show matinal às 8h. Entretenimento, música e também temas mais sérios, como suicídio, são fazem parte do programa. Trata-se, acima de tudo, de "reforçar o moral dos soldados” diz Candelaria.
A rádio GTMO não informa sobre os interrogatórios em andamento antes dos julgamentos militares, e tampouco sobre a prisão, que, segundo Candelária, não é "parte da cultura” da base naval. De fato, todas as instalações da prisão são inacessíveis à maioria das 6 mil pessoas que vivem em Guantánamo. "Sabemos apenas o que lemos na imprensa”, afirma a apresentadora.

Annaliss Candelaria
Annaliss Candelaria apresenta o show matinal da Rádio GTMOFoto: Oliver Sallet/DW

Planos, planos e mais planos

O dia 11 de janeiro marca o 20º aniversário do campo de prisioneiros de Guantánamo. Essa data traz à tona a questão sobre como a existência do local ainda é permitida hoje em dia, apesar das óbvias violações aos direitos humanos e ao Estado de direito e, sobretudo, após os EUA terem encerrado a guerra ao terror no Afeganistão e retirado suas tropas do país. Afinal, esta seria a justificativa primordial para a existência da prisão.

O primeiro plano para o fechamento do local veio com o fim do governo Bush. Seu sucessor, Barack Obama, prometeu diversas vezes fechar o campo de prisioneiros, mas acabou perdendo a maioria no Congresso para os Republicanos.

Joe Biden
Joe Biden prometeu fechar o campo de prisioneiros em GuantánamoFoto: Saul Loeb/AFP

Estes, por sua vez, introduziram uma lei que estabelecia que "nenhuma pessoa que esteve detida em Guantánamo poderá vir aos EUA por qualquer motivo”, explicou Nancy Hollander. Segundo a advogada, isso torna impossível transferir os presos para os Estados Unidos.

Transformar palavras em ações

A mudança de rumo veio com o ex-presidente Donald Trump, que anunciou que a prisão de Guantánamo permaneceria aberta. Os republicanos argumentam que o local continua protegendo o país de ataques terroristas, e que seria perigoso transferir os detentos para solo americano. Já os opositores de Guantánamo afirmam que a simples existência do local já serve para radicalizar mais jovens muçulmanos.

A mudança seguinte veio no governo do presidente Joe Biden, que, através de um porta-voz, anunciou após tomar posse que planejava fechar o campo de prisioneiros durante seu mandato.

A advogada Nancy Hollander
A advogada Nancy Hollander defende a libertação imediata de todos os prisioneiros em GuantánamoFoto: Stefanie Loos/AFP/dpa/picture alliance

Mas, quando o Comitê de Inteligência do Senado se reuniu para discutir a questão, nenhum representante do governo Biden esteve presente. Para Nancy Hollander, isso demonstra quais são as prioridades do governo, que, até agora, "não fez nenhuma tentativa de transformar suas palavras em ações”.

Presos, apesar da falta de provas

O governo Biden considera ter problemas maiores com seu fracassado programa de reforma da infraestrutura do país, além da aproximação das eleições legislativas e da baixa popularidade nas pesquisas. O que o futuro trará para "Gitmo" é algo que está completamente em aberto. Alguns dos prisioneiros poderão ser libertados como planejado, enquanto outros poderão ser deportados para seus países de origem.

Daphne Eviatar, da AI, se diz otimista quanto ao futuro do local. "Quanto menor se tornar o número de detentos, mais absurda será [a existência da prisão]”, afirma. O que se sabe é que, além dos já bem conhecidos princípios morais em questão, cada prisioneiro custa por ano 13 milhões de dólares aos contribuintes americanos.  

Seria menos custoso mantê-los em prisões americanas, mas isso, mesmo não levando em conta os entraves legais, também não seria ideal, afirma Nancy Hollander. A advogada exige a liberação imediata de todos os detentos em Guantánamo.

"Não podemos prender pessoas por 20 anos sem qualquer acusação, somente porque, embora não haja provas suficientes para acusá-los, sabemos de alguma forma que são perigosos”.

A questão sobre o futuro de Guantánamo não pode mais ser respondida com argumentações racionais. Assim como tantas outras coisas nos EUA, o tema se tornou peça do jogo político americano, em cuja sombra os "prisioneiros eternos” há 20 anos aguardam julgamento.