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"O racismo está inscrito no corpo negro"

Timo Bartholl | Raúl Zibechi Colaboração: Philipp Lichterbeck
21 de julho de 2020

Geandra Nobre, atriz da Cia Marginal de Teatro, no Complexo da Maré, fala sobre estereótipos e o "doloroso" processo para se libertar deles. "Nossos corpos negros são marginalizados, são os corpos que a polícia mata."

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Geandra Nobre
Geandra Nobre: "A mulher negra é a base de uma pirâmide de violência"Foto: Léo Lima

A recente onda de mobilizações mundo afora contra o racismo, que também chegou ao Brasil, reforçou a importância de iniciativas negras e periféricas no âmbito político e cultural, que questionem e enfrentem de forma criativa o racismo estrutural sofrido por negras e negros no país. É o caso da Cia Marginal de Teatro, nascida na Maré, no Rio de Janeiro, em 2006.

A última peça do grupo, Hoje não saio daqui, é sobre a vida de angolanos que vieram à Maré, e o palco fica no Parque Ecológico da Maré. Cinco atores angolanos participam da peça, que é impossível de imaginar em um teatro fechado com a plateia sentada. Em 2019, a peça foi indicada ao prêmio "Faz Diferença", iniciativa do Globo, e foi considerada uma das dez melhores do ano no Rio de Janeiro pelo jornal.

Geandra Nobre vive na Maré – que, com cerca de 140 mil habitantes, é o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro –começou a atuar aos 16 anos, em 1998, e hoje é atriz da Cia Marginal.

Em entrevista, ela fala sobre a importância do teatro em sua vida e sobre as dificuldades enfrentadas por negros no Brasil. "O racismo está inscrito no corpo [...] O corpo negro é problemático e busca igualar-se com o corpo branco. Nossos corpos negros são marginalizados, são os corpos que a polícia mata, são sempre os corpos mais espancados", afirma. "A libertação dos nossos corpos é um processo doloroso."

DW: Como se deu o seu encontro com o teatro?

Geandra Nobre: A princípio eu detestava fazer teatro. Em um projeto municipal que visava treinar jovens na área da saúde, o teatro foi usado como ferramenta para desinibir os jovens de contar suas experiências. As professoras que nos ensinaram, Isabel Penoni e Joana Levi, tinham um método de trabalho que fazia os adolescentes pensarem. Foi algo novo para mim e me deixou desconfortável, já que toda a minha vida eu tinha sido colocada em uma cadeira sem poder dizer nada. A liberdade que eu tinha me incomodava.

Geandra Nobre
Geandra Nobre: "A mulher negra é a base de uma pirâmide de violência"Foto: Léo Lima

Quais foram as inspirações iniciais do grupo?

Temos muita referência no que consideramos clássicos, como o [método] Teatro do Oprimido, para trabalhar a autoestima e a inversão de papéis. Mas criamos nosso próprio método de trabalho a partir das nossas memórias, do nosso corpo, um trabalho físico muito forte e uma narrativa que não te coloca em uma situação de reprodução de estereótipos. Não seguimos uma dramaturgia pronta, mas criamos cenas e construímos narrativas a partir de pequisas que fazemos junto aos sujeitos cujas histórias queremos contar na peça. Histórias que cruzamos com nossas vivências enquanto sujeitos negros e favelados. E somente em um segundo momento construímos, a partir disso, a dramaturgia para a peça como um todo.

Pode nos dar um exemplo?

Nosso primeiro espetáculo se chama Qual é a nossa cara? É uma homenagem aos habitantes da Nova Holanda, as pessoas anônimas que construíram essa favela. Porque você não presta homenagem ao anônimo. É sempre alguém que tem um grande nome. E isso é uma característica da Cia Marginal, a gente faz uma referência aos nossos próximos, contamos a história desses moradores que são anônimos. Como é que você eterniza a memória dessas pessoas? Num espetáculo. É o que fazemos.

A experiência do teatro experimental negro tem algum significado para você?

É difícil, em um processo como o nosso, conhecer autores negros e metodologias de autores negros. Há tentativas de recuperar a história do negro, do movimento negro que também se reflete em nossa vida pessoal. Se eu quiser contar a história da minha família, não consigo passar da terceira geração, porque só a conheço até minha avó. Eu, minha mãe, minha avó. É o mesmo com a história do teatro negro como a do Abdias do Nascimento, que era um grande ator, escritor, dramaturgo, professor universitário, político e ativista negro. Não a conhecemos bem porque ela foi apagada, assim como a história de qualquer pessoa negra é apagada todos os dias. Na Cia Marginal, não nos construímos como um teatro negro explicitamente. No nosso grupo, assim como nas nossas favelas, há pessoas brancas, não brancas e negras. Podemos dizer que fazemos um teatro negro e favelado.

Frantz Fanon, importante autor sobre a descolonização, fala sobre a interiorização da opressão pelos oprimidos. Você acha que a opressão está inscrita nos corpos?

Não podemos mudar de corpo. O racismo está inscrito no corpo, porque homens e mulheres brancos não têm o mesmo problema com seus corpos. Podem ser gordos, magros, altos ou baixos, podem usar cabelos ruivos ou pretos sem problemas. Mas o corpo negro é problemático e busca igualar-se com o corpo branco. Nossos corpos negros são marginalizados, são os corpos que a polícia mata, são sempre os corpos mais espancados. Ninguém quer ser negro. Por isso precisamos trabalhar a nossa autoestima e potencializar a autoestima da outra e do outro. A libertação dos nossos corpos é um processo doloroso.

Cena da peça "Eles não usam Tênis Naique"
Geandra Nobre (dir.) em cena da peça "Eles não usam Tênis Naique", da Cia Marginal de TeatroFoto: Renato Mangolin

Como funciona o trabalho corporal de vocês neste contexto?

Há um estereótipo que assume que os homens negros e as mulheres faveladas têm um corpo marginalizado, que é o corpo do traficante. Quando criamos a Cia Marginal, havia muitos filmes que falavam sobre a vida cotidiana da favela. Mas quando é representado corporalmente, aparece sempre a vida cotidiana do traficante, da jovem grávida que tem que fugir de casa. Nossa proposta dentro do processo de pesquisa corporal foi descobrir seu corpo, e não reproduzir os estereótipos sobre o seu corpo.

Nós nos surpreendemos na favela, num sábado à noite, ao ver muitas moças fazendo fila para ter o cabelo alisado.

A opressão já está na televisão. Lá nunca vemos o negro representado. Olho para a televisão e não me vejo. Você somente fica com a opção de ser branco ou branco. Este processo de comprometer-se com a autoestima, porque as pessoas precisam de autoestima, passa por deixar seu cabelo natural, gostar da cor de sua pele. Nos últimos anos tem havido uma mobilização através de plataformas como o Youtube, nas quais criamos as nossas formas de nos comunicar com a nossa identidade. As mulheres que vemos falar dos seus cabelos, das suas roupas, contribuem muito, porque isso não parte de mulheres "rebeldes", mas de mulheres que de alguma forma começaram agora a se identificar [como negras].

E como o público da favela reage quando assiste ao teatro negro e favelado?

Nesses 15 anos de trabalho, sempre atuamos em teatros fora da Maré, mas a gente sempre faz questão de nos apresentarmos dentro da Maré. Quando nos apresentamos aqui, é como uma catarse. Porque os moradores se identificam com o espetáculo. Nosso penúltimo trabalho se chama Eles não usam Tênis Naique, e nossa narrativa aborda a questão geracional de um pai e uma filha.

A história se passa dentro da favela, em relação à questão do tráfico. Então, aparece uma identificação com os problemas, com a identidade dos sujeitos, com os corpos que estão representando esse espetáculo. Você tem uma mulher negra no palco, eu sou uma atriz mulher negra, então você se vê. Quando você vê uma mulher negra se apresentar, você também se vê a si mesma. É muito emocionante para as pessoas, mas quando é realizado fora da Maré, às vezes há uma forte reação do público que não é favelado ou negro.

Qual é a diferença?

Ao saber que somos da Maré, o público espera um teatro com pouca qualidade, pensa que o teatro não vai ser bom. Em 2018 fizemos um circuito pelo Brasil com Eles Não usam Tênis Naique. Saímos da escala favela/não favela, centro da cidade, para uma escala muito maior e com realidades muito diferentes. Na peça, é feita uma pergunta: "Tem gente que nasce ruim?" Em geral, o público sempre responde "sim", assumindo que aquele que nasce ruim é aquele da favela, o bandido, o preto. Mas quando fazemos a mesma pergunta dentro da Maré, a resposta é um "não" coletivo.

Tem outras atividades culturais que estão influenciando a autoafirmação do favelado?

Nossos pais estavam ocupados em conseguir água, saneamento e moradia. Essa geração conseguiu isso, estruturou a favela. A nova geração está reivindicando sua identidade. Então eles estão começando a construir outros espaços, estamos falando de teatro, mas tem a música, dança, temos uma série de espaços que contribuem para a construção da nossa identidade.

Que diferenças você encontra entre homens e mulheres na favela? 

A mulher negra é a base de uma pirâmide de violência. As mulheres são as que mais sofrem. São elas que perdem seus filhos. Quando um filho é morto pela polícia, a mãe morre junto. Por sofrerem tanta violência, surgem diferenças. As mulheres, e em especial as mulheres negras, têm muita dificuldade por exemplo de ter um relacionamento estável. Os homens negros procuram mulheres brancas. E homens são bem mais inclinados ao discurso do ódio, como no caso do bolsonarismo. As mulheres, no entanto, são muito mais comunitárias e combativas.

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