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O Brasil caminha para um futebol mais igualitário?

7 de setembro de 2020

Equiparação de diárias pagas a homens e mulheres pela CBF foi celebrada como histórica. Mas ao futebol feminino, marcado por passado de repressão política e cultural, ainda falta autonomia e um projeto de longo prazo.

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Marta celebra gol na Copa do Mundo de Futebol Feminino, em junho de 2018
Marta celebra gol na Copa do Mundo de Futebol Feminino, em junho de 2018Foto: Imago Images/Zuma/M. Smith

Antes de Marta dominar a cena no futebol feminino, o Brasil teve outra grande camisa dez, considerada uma das maiores jogadoras de todos os tempos. Sissileide Lima do Amor, a Sissi, liderou a primeira geração de mulheres a vestir a amarelinha, após quase 40 anos de proibição do futebol feminino no país.

Convocada para o Mundial Experimental de 1988, torneio de estreia da seleção feminina, Sissi teve que resolver um problema de última hora antes da viagem para a China, a primeira que faria de avião. Ela ainda não tinha completado 18 anos e precisava de autorização da família para sair do Brasil, mas o pai viajara a trabalho.

O jeito foi convencer a mãe, "super certinha", a falsificar a assinatura do marido. Deu certo, e o Brasil ficou em terceiro lugar na competição que serviu de teste para a realização da primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino, em 1991.

A realização do sonho de vestir a amarelinha ofuscou qualquer dificuldade. Para caber no uniforme que vinha das sobras da equipe masculina, as atletas dobravam os shorts e faziam graça da situação. "As baixinhas sofriam mais, a camisa ficava enorme. É claro que a gente ficou chateada, mas só queria representar o Brasil da melhor maneira possível", recorda Sissi.

Os anos se passaram, e o romantismo debutante deu lugar às cobranças. A camisa dez se viu fora da convocação para a Copa do Mundo de 2003 devido ao boicote que sofreu por externar críticas à maneira como a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) conduzia o futebol feminino e reivindicar condições justas de trabalho, como a valorização das diárias pagas às atletas a serviço da seleção.

"Foi um momento muito delicado para mim. Eu vivia meu melhor momento no futebol, jogando na liga dos Estados Unidos com as melhores jogadoras do mundo", lamenta a ex-jogadora. Para quem sofreu na pele a represália por ter exigido mudanças, um anúncio feito há poucos dias trouxe muita felicidade.

CBF equipara diárias

A CBF anunciou na última quarta-feira (02/09) que, desde março deste ano, equiparou as diárias pagas a atletas homens e mulheres das seleções brasileiras de futebol. Até então, Neymar e companhia recebiam R$ 500 por cada jornada de treino no Brasil, enquanto a metade era paga a Marta e às demais atletas.

Em viagens internacionais, a diária das mulheres era mantida. Já a dos homens subia para 1.600 dólares, quantia mais de 30 vezes superior ao valor pago às atletas. Em seu perfil no Twitter, a ex-jogadora Alline Calandrini lembrou que o cachê da CBF durante seu início na seleção, em 2006, era de 25 reais.

Seleção brasileira feminina no Mundial Experimental de 1988
Seleção brasileira feminina no Mundial Experimental de 1988: Sissi é a primeira agachada, da esquerda para a direitaFoto: Acervo Museu do Futebol/Suzana Cavalheiro

A equiparação das diárias não foi a única novidade divulgada pela CBF. Embora a seleção seja treinada hoje pela sueca Pia Sundhage, a gestão executiva do futebol feminino nunca tinha sido conduzida por mulheres. Agora, duas ex-jogadoras irão conduzir a gestão da modalidade.

Ex-gerente do Internacional, Duda Luizielli estará à frente das seleções femininas. Já a coordenação das competições femininas ficará a cargo de Aline Pellegrino, capitã da seleção durante a campanha do vice-campeonato na Copa do Mundo de 2007 e diretora da modalidade na Federação Paulista de Futebol (FPF) por quatro anos.

"Momento histórico"

"É um momento histórico. Não esperava que isso fosse acontecer tão cedo. Mas antes tarde do que nunca. A repercussão foi grande aqui nos Estados Unidos", conta Sissi, que se estabeleceu no país onde encerrou a carreira. Aos 54 anos, ela treina atletas da equipe sub-12 e é diretora técnica em um clube da Califórnia.

A experiência nos EUA despertou seu olhar para a importância do investimento nas categorias de base. Para a ex-jogadora, o futebol feminino no Brasil só poderá dar um salto de qualidade a partir de um projeto de longo prazo, com foco nas jovens atletas.

"É muito importante que Aline e Duda tenham carta branca e apoio para trabalhar. Os EUA começaram esse trabalho em 1988, não é da noite para o dia. Todos os anos, eles têm novas jogadoras na seleção. Quando falo em investir na base, eu me refiro a dar estrutura, criar um calendário e incentivar o futebol feminino nas escolas", diz.

Proibição de quase 40 anos

As graves carências estruturais, no entanto, não constituem o único empecilho ao desenvolvimento da modalidade no Brasil. Em 1941, um decreto assinado por Getúlio Vargas no período do Estado Novo proibiu a prática do futebol por mulheres no território nacional.

Assim como aconteceu em países como Alemanha e Inglaterra, onde as proibições foram mais curtas, o governo embasou a medida pela ameaça à "feminilidade". Em maio de 1940, o jornal varguista O Imparcial destacou o "surto notável" que vivia o futebol feminino, sobretudo no subúrbio do Rio de Janeiro, em meio à expectativa de sua proibição pelo governo.

"Parece, todavia, que extinguirá o football feminino. Isto acontecendo, terá dado S. Ex. provas categóricas que zela pelo reerguimento da raça, impedindo a prática de sports proibidos em todo o universo pelas maiores sumidades médicas", dizia o artigo.

Tendo vigorado até 1979, a proibição deixou cicatrizes culturais. Há menos de 20 anos, quando já tinha uma carreira consolidada nos EUA, Sissi ficou balançada com um convite para voltar a jogar no Brasil, feito pela Federação Paulista. Mas não tardou para a animação dar lugar ao desalento.

Com o suposto objetivo de atrair maior público para os jogos, a federação determinou que mulheres de cabelo curto não poderiam disputar o Campeonato Paulista de Futebol Feminino de 2003 — "regra" que afetava diretamente a ex-jogadora.

Caminho próprio

A historiadora Aira Bonfim, que pesquisa o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil, afirma que a trajetória de repressão política e cultural enfrentada pelas mulheres no esporte colocou a modalidade em situação tão díspar que as soluções dos problemas não deve passar por comparações com o futebol masculino.

"É preciso reelaborar o conceito de profissionalização da modalidade, que não é igual à masculina. Dificilmente as cifras movimentadas chegarão a um mesmo nível algum dia. Gostaria que houvesse tanta autonomia a ponto de se vislumbrar uma confederação independente. Está claro que a CBF se entende como uma entidade do futebol masculino", avalia.

A crítica da historiadora está alinhada à estratégia que Aline Pellegrino, nova Coordenadora de Competições Femininas da CBF, vinha implementando como diretora da modalidade na Federação Paulista há quatro anos. A partir de boas estratégias comerciais para o campeonato, os clubes paulistas se fortaleceram e, hoje, abrigam jogadoras da seleção, como a atacante Cristiane, maior artilheira dos Jogos Olímpicos, atualmente jogadora do Santos.

Na gestão de Pellegrino, o torneio estadual passou a ser transmitido pela internet e, em fases finais, na televisão, superando a audiência de jogos da Premier League e da Bundesliga, ligas masculinas de Inglaterra e Alemanha, respectivamente. Durante entrevista ao podcast Passion Cast, em julho, Pellegrino defendeu a importância de entender o modelo de negócio próprio do futebol feminino para levar às marcas a "verdade" da modalidade.

"Nossa verdade é ter a Cristiane, jogadora reconhecida no mundo inteiro, vestindo a camisa do São Paulo, jogando a final contra o maior rival, e sendo abraçada pela torcida corintiana. Ou mesmo uma final na Arena Corinthians em que havia torcedores de outros times, e não só do Corinthians. Isso não tem no masculino. Que marca pode se interessar por isso?", questionou a executiva.