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Regras eleitorais não garantem diversidade, dizem críticos

17 de agosto de 2022

Para ativistas e especialistas, novas normas podem ajudar a diversificar Congresso, hoje majoritariamente branco e masculino, mas são insuficientes para corrigir sub-representação de negros, indígenas, mulheres e LGBT+.

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Congresso iluminado com as cores LGBT+, em maior de 2022
Congresso iluminado com as cores LGBT+, em maior de 2022Foto: Elaine Menke/Câmara do Deputados

Mudanças recentes na lei eleitoral brasileira podem ajudar a diversificar o perfil de um Congresso hoje majoritariamente branco e masculino, que contrasta com um país de maioria feminina e negra. Ativistas e especialistas consultados pela DW Brasil, contudo, consideram as medidas insuficientes para superar o problema da sub-representação política de grupos demográficos importantes, como negros, indígenas, mulheres e LGBT+.

Nas eleições deste ano, os votos dados a mulheres e pessoas negras passam a valer em dobro na hora de calcular a distribuição dos recursos dos fundos partidário e eleitoral, também conhecido como fundão eleitoral. A medida vale a partir deste ano e vigora até 2030.

Essas verbas públicas são cruciais para os partidos, já que o financiamento das campanhas depende majoritariamente de dinheiro público - em 2018, mais de 80% das despesas foram custeadas dessa forma.

Isso significa que as siglas têm um incentivo extra para investir em candidaturas que representem um desses perfis, ou ambos, em vez de usá-las como meras fachadas para cumprir cotas e desviar recursos para outras campanhas, como já ocorreu no passado.

Outra regra estabelece uma fatia mínima de 30% dos recursos públicos destinados a campanhas eleitorais e do tempo de rádio e TV para candidaturas femininas - parcela que aumenta proporcionalmente caso o percentual de mulheres na disputa por um partido supere o mínimo de 30% fixado em lei.

A terceira medida, esta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), determina o repasse dos fundos partidário e eleitoral proporcional à quantidade de candidaturas negras – se uma sigla lançar 50% de candidatos negros, por exemplo, terá que destinar o mesmo percentual dos recursos a candidatos desse grupo.

Políticas afirmativas sujeitas a fraudes

Tanto a contagem em dobro de votos dados a mulheres e negros para o cálculo do fundão eleitoral quanto o repasse proporcional a candidaturas negras são saudados por ativistas como medidas bem-vindas, porém problemáticas na sua implementação sob diversos pontos de vista.

O primeiro é que o critério racial que norteia as duas medidas é baseado em informações fornecidas pelos próprios partidos, sem validação externa e, portanto, sujeitas a fraude. Alguém pode informar à Justiça Eleitoral ser pardo apenas para tirar vantagem da cota, aponta Laura Astrolabio, da ONG A Tenda das Candidatas, projeto social de formação política para mulheres.

Astrolabio defende que políticas afirmativas que incentivem a participação de pessoas negras na política devem vir associadas a algum tipo de controle similar ao que já existe para concursos públicos e seleções para o ensino superior, em que uma banca de heteroidentificação avalia se a declaração racial do candidato, de fato, procede e foi feita de boa fé.

"A luta do movimento negro vai aumentar para que esse grupo historicamente mais marginalizado consiga ter acesso a ações afirmativas. E aí as fraudes vão acontecer. O TSE já deveria estar fiscalizando isso", argumenta a advogada e mestranda de Políticas Públicas em Direitos Humanos.

Luiz Augusto Campos , professor de Sociologia e Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA)
Para o professor e pesquisador Luiz Augusto Campos, o problema não é falta de candidatos negros. "Candidaturas nunca foram o gargalo, o gargalo é a eleição."Foto: Privat

Para o professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Luiz Augusto Campos, o problema em candidatos informarem uma raça distinta daquela com a qual de fato se identificam é muito mais uma questão de leniência dos partidos, que seriam relapsos no ato do registro de candidaturas, do que efetivamente um ato de má-fé.

Campos conduziu um estudo sobre as eleições municipais de 2020 que embasa essa conclusão, e estima que o índice de declarações discrepantes de raça não cheguem a 10% das candidaturas. "Talvez tivéssemos que pensar em soluções do tipo o candidato ter que assinar o registro de candidatura de próprio punho, ratificando a declaração de raça", sugere.

"O gargalo é a eleição"

O professor e pesquisador ressalva que não é que faltem candidatos negros. "Candidaturas nunca foram o gargalo, o gargalo é a eleição", afirma. E esse gargalo, diz, é ainda mais estreito para mulheres negras.

O sucesso nas urnas, aponta Campos, depende de dois fatores: acesso a verba de campanha e a uma estrutura de apoio dentro dos partidos.

Para Campos, a regra de distribuição proporcional de recursos a negros é uma "faca de dois gumes" porque não fixa uma cota mínima de candidaturas, podendo até desincentivá-las. Ele defende que o mais adequado seria a criação de cotas para o Congresso.

"Eu acho que há sim risco de termos candidaturas ‘fictícias' de raça, de pessoas usurparem esse lugar de reparação para ter vantagem competitiva", endossa Juliana Romão, do Meu Voto Será Feminista, coletivo de candidaturas feministas de esquerda e centro-esquerda.

Ela diz, contudo, que isso não deve servir de pretexto para acabar com políticas afirmativas, e sim incentivar seu aperfeiçoamento. "Lançar candidatura laranja, hoje, pega mal para os partidos – ainda não o suficiente para eles pararem de lançar, mas existe um constrangimento", opina.

Solenidade de posse dos senadores durante primeira reunião preparatória para 56ª Legislatura (2019-2022)
Congresso branco e masculino: solenidade de posse dos senadores durante primeira reunião preparatória para 56ª Legislatura (2019-2022)Foto: Pedro França/Agência Senado

Grupos minoritários competem entre si

Outro problema das novas regras eleitorais, segundo Astrolabio, é o fato de colocarem gênero e raça num patamar de equivalência e, portanto, tratarem da mesma maneira homens negros, mulheres brancas e mulheres negras.

Aqui, são duas críticas: a primeira é que mulheres negras, embora sejam as mais sub-representadas na política – atualmente 2,5% no Congresso, com 13 deputadas e uma senadora –, ficam sem compensação adequada devido a dois obstáculos estruturais e simultâneos que enfrentam nas campanhas: racismo e misoginia. Ao pleitear acesso a verbas de campanha, elas só podem fazer valer seu direito ou por serem mulheres, ou por serem negras.

"Se tiver menos negros e mais mulheres brancas, vai mais dinheiro para as mulheres", aponta Astrolabio. "Se tiver mais negros, vai mais dinheiro para negros. E aí a mulher negra vai ter que escolher se é só mulher ou só preta, ela não pode pleitear recursos pelas duas vias."

A segunda crítica é que, como fica a livre critério dos partidos decidir em qual candidatura apostar – se em mulheres brancas, mulheres negras ou homens negros –, grupos minoritários acabam competindo entre si.

Quanto à cota mínima de candidaturas femininas à qual os partidos estão sujeitos por lei desde 1997, Romão ressalta que o fato de os partidos serem obrigados por lei a registrarem um mínimo de 30% de candidaturas femininas não significa que todas elas estarão, de fato, aptas à disputa.

Ela diz que mulheres enfrentam maiores obstáculos na hora de driblar os trâmites burocráticos impostos pela Justiça Eleitoral, já que são mal assessoradas e têm menos apoio dentro de seus partidos. "Mulheres têm os maiores índices de candidaturas declaradas inaptas", afirma.

"Às vezes elas ficam inelegíveis por besteira, por falta de estrutura para prestar contas, falta de contador", complementa Bia Paes, também do Meu Voto Será Feminista.

Subfinanciamento de campanhas negras e femininas

Quanto à contagem em dobro de votos em mulheres e negros para fins de cálculo do fundão eleitoral, Hannah Maruci, da A Tenda das Candidatas, assinala que premiar por número de mandatos conquistados em vez de votos seria um critério mais eficiente para tornar os parlamentos mais diversos e representativos. Da forma que está, avalia, os partidos tendem a priorizar algumas poucas candidaturas campeãs de voto nesse perfil.

"Essa regra pode privilegiar a mulher única ou o negro único – que os partidos invistam numa mulher branca ou pessoa negra que vai trazer muitos votos e muito dinheiro, em vez de lançar mais candidaturas negras e de mulheres", afirma a pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP). "Vai ter mais mulheres na política? Não. Vai privilegiar quem já tinha muita visibilidade."

A advogada Laura Astrolabio (esq.) e a cientista polítca Hannah Maruci (dir.), cofundadoras da A Tenda das Candidatas, organização que promove formação política para mulheres
A advogada Laura Astrolabio (esq.) e a cientista polítca Hannah Maruci (dir.), cofundadoras da A Tenda das Candidatas, organização que promove formação política para mulheresFoto: Blínia

Uma avaliação semelhante é feita por Romão. "Quando a contagem é por votos, os partidos escolhem uma estrela e investem muito nela. Ela vai ter uma quantidade exorbitante de votos, vai puxar muita gente e vai fazer com que o partido ganhe mais dinheiro. Mas quem foi eleito? Uma pessoa negra a mais."

Outro ponto levantado por Romão é que a última reforma política reduziu o número de candidaturas que um partido pode lançar às eleições. Isso acirra a disputa interna entre as siglas e, nesse jogo, ela diz que as mulheres, especialmente mulheres negras, acabam preteridas.

Para Maruci, a regra que estabelece a destinação de um mínimo de 30% dos recursos públicos e do tempo de rádio e TV para candidaturas femininas também pode perpetuar distorções, já que não diferencia entre disputas por cargos ao Executivo ou Legislativo, e na prática incentiva a concentração de recursos em poucas candidaturas, já que um partido pode escolher direcionar os valores a uma única mulher, preterindo as demais. Fenômeno semelhante pode acontecer com a reserva proporcional de recursos a candidaturas negras.

Candidaturas laranjas

A cientista política defende uma regulação que assegure uma partilha mais justa de recursos entre um maior número de postulantes à eleição. Para ela, isso seria um meio mais eficiente para combater as chamadas "candidaturas laranjas” – quando um partido lança nomes apenas para cumprir exigências eleitorais e continua concentrando recursos em algumas poucas campanhas, o que perpetua o problema do subfinanciamento de campanhas negras e femininas.

"Tem dois tipos de candidatura laranja: a que quer ajudar o partido com a fraude e a que é feita laranja pelo partido, que eles precisam ali para cumprir a cota mínima de 30% de candidaturas femininas. Eles pegam essas lideranças, prometem mundos e fundos, e na hora da eleição elas não recebem um centavo. Essas já estão existindo”, assevera Maruci.

Outro ponto crítico, segundo Astrolabio, é que falta uma regulamentação mais clara sobre a distribuição de recursos do fundão eleitoral a candidaturas negras e femininas. "Os partidos não sabem como vão dividir esse dinheiro”, afirma. "O TSE vai deixar para orientar os partidos quando? No meio da campanha?”

"Sistema invisibiliza minorias"

Para denunciar o problema da sub-representação e subfinanciamento de candidaturas negras e femininas, o projeto A Tenda das Candidatas vai lançar uma campanha informativa, com a divulgação de estratégias para que essas candidaturas aprendam a se defender de possíveis boicotes em seus partidos.

"O processo eleitoral não é justo com as minorias. Não há visibilidade suficiente para que o eleitorado possa escolher com consciência. Ele termina visualizando na prateleira quem está na mídia, quem está ali há muito tempo – que são os homens. É um voto quase viciado", lamenta Romão. "Essas pessoas não são votadas por uma série de questões culturais, mas também estruturais. Existe uma equação do sistema que as invisibiliza."