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Filme sobre pedofilia põe vítimas e padres frente a frente

Magdalena Gwozdz-Pallokat de Varsóvia/rk
17 de maio de 2019

Com quase 20 milhões de visualizações, documentário polonês publicado no Youtube expõe abusos sexuais cometidos por clérigos na Polônia e incendeia debate no país predominantemente católico.

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Grades de portão  de metal têm sapatos infantis pendurados com cartazes contra a pedofilia na Igreja católica, em evento em Varsóvia em 2018
Viralização do documentário incendiou debate sobre pedofilia na IgrejaFoto: picture-alliance/dpa/M. Luczniewski

Em menos de uma semana, quase 20 milhões de pessoas acessaram o documentário polonês Tylko nie mów nikomu (Tell no one, em inglês, ou Não conte a ninguém, em tradução livre) que estreou no Youtube no último sábado (11/05) e não foi exibido nos cinemas ou na televisão.

Foi o crowdfunding (financiamento coletivo) que ajudou a colocar de pé o projeto depois que os autores não encontraram uma rede de TV que quisesse produzi-lo. Agora, os jornalistas brigam para entrevistar os irmãos Sekielski.

"O momento estava pedindo um filme assim. Surgiam cada vez mais matérias sobre o tema na imprensa, e o filme Kler (Clero) mudou o tom da discussão", explica o diretor Tomasz Sekielski.

Nos trends do Youtube na Polônia, o filme atingiu diretamente o primeiro lugar. Mas também ocupa as primeiras posições em outros países, como Islândia, Irlanda ou Noruega. A versão com legendas em inglês está sendo vista no mundo todo.

Com o filme, os irmãos Sekielski (Marek é produtor) não conseguiram apenas colocar vítimas de abusos sexuais diante das câmeras, mas também confrontá-las com seus detratores. Mesmo muito velhos, criminosos enfrentam o próprio passado na obra.

Depois de anos de silêncio, os protagonistas do filme revelam detalhes extremamente íntimos. "Eu tinha sete ou oito anos. Você me tocou onde não deveria tocar, nas minhas partes íntimas", diz Anna Misiewicz, de 39 anos, e olha nos olhos de seu algoz, que aparece em grande plano para a câmera, mas com o rosto desfocado. Apenas após algum tempo de conversa, Anna chama o abuso pelo nome: "Padre, você se masturbou usando minhas mãos."

Sentado na frente da vítima, o padre dá a impressão de um certo desconforto, mas parece preparado, como se tivesse esperado ou temido esse dia durante muito tempo, ou como se até tivesse esperado uma espécie de catarse. No filme, com as mãos diante do rosto, o padre pergunta: "E agora?". Diz que se arrepende de seus atos e que reza com frequência por aqueles de quem abusou. Acrescenta que, se Anna tivesse entrado em contato com ele mais cedo, quando ele ainda tinha forças, ele a teria "compensado de alguma maneira". "Você está falando de dinheiro? Nenhum dinheiro pode compensar isso. Está aqui dentro", chora Anna.

Em Gdánsk, ativistas, de costas para a câmera e no escuro, olham para tela posicionada em frente a casa do arcebispo Slawoj Leszek Glodz. Cena exibida mostra padre que abusou de menina ao lado da vítima em foto de primeira comunhão, há mais de 30 anos
Cena de "Não Conte a Ninguém" mostra vítima ao lado de detrator há mais de 30 anosFoto: Imago Images/Eastnews

Desde o lançamento, o filme já registrou mais de 18 milhões de visualizações, e a Polônia inteira parece estar falando nele, não só na internet. Num país onde cerca de 90% da população ainda se diz de confissão católica e onde a palavra do padre – especialmente no meio rural – continua tendo enorme importância, essa nova e atordoante tematização dos abusos na Igreja Católica não é nada menos do que um terremoto social.

E não é apenas por causa das histórias das vítimas, mas também porque o filme revela mecanismos e resistências no interior da igreja que as vítimas enfrentam: portas fechadas, a proteção dos criminosos, desconfiança generalizada em relação às vítimas e seus relatos – o filme mostra tudo isso de maneira tão veemente quando a forma como reconta os próprios e horríveis casos de abuso.

"A pedofilia na Igreja é sempre um problema sistemático", avalia o padre jesuíta Jacek Prusak, em entrevista ao canal privado de televisão TVN24. "Não deveria ser reduzido aos detratores, já que esse é apenas um lado da moeda. O outro é a instituição na qual eles praticam os crimes, que facilitam sua atuação ou até a justificam", aponta.

A repressão e o encobrimento que já foram atacados com um exemplo fictício no filme Kler (Clero) ainda são superados pela realidade mostrada no documentário. É que a obra mostra como um sacerdote condenado por pedofilia e que cumpriu pena de prisão foi realocado para voltar a atuar no aconselhamento espiritual de crianças e jovens. Filmada com uma câmera escondida, a cena o mostra novamente diante de crianças numa igreja. Agora, o próprio religioso pediu para ser excomungado.

Coragem versus "sem valor"

Não foi preciso esperar muito por uma reação da liderança da Igreja. Wojciech Polak, o primaz da Polônia (arcebispo da mais antiga arquidiocese do país), reagiu rapidamente.

Mas foi diferente antes da estreia do filme. Assim como de tantos membros da alta hierarquia da Igreja, os autores do filme também receberam uma negativa de Polak. No final do documentário, Sekielski mostra a resposta oficial do episcopado, que diz que o filme é parcial.

Depois da estreia, houve uma reviravolta. A cúpula da Igreja Católica polonesa já se desculpou com as vítimas no último fim de semana, e o primaz Polak agradeceu ao diretor do filme pela sua "coragem" e se disse emocionado. "O grande sofrimento das vítimas desperta sentimentos de dor e de vergonha. Agradeço a todos que têm a coragem de relatar sobre o seu sofrimento. Peço perdão por cada ferida causada por clérigos", disse Polak, num comunicado por escrito.

Stanislaw Gadecki, presidente da Conferência Episcopal da Polônia, se pronunciou de maneira semelhante, mas bem diferente do arcebispo de Gdánsk, Sławoj Leszek Głódź, considerado pertencente ao braço ultraconservador da Igreja Católica polonesa. A uma repórter, Głódź disse que tinha mais o que fazer do que assistir a algo "sem valor".

Algumas horas depois, políticos do partido liberal de esquerda Wiosna ("Primavera", em português) exibiram o filme diante da residência de Głódź. A nova legenda, que pode conseguir ser eleita ao Parlamento polonês daqui a alguns meses, é a que mais critica a Igreja entre os partidos do país.

Vários partidos oposicionistas também exigem uma ampla comissão de inquérito que também inclua representantes das vítimas.

Wojciech Polak, primaz da Polônia, dá entrevista em Varsóvia. Atrás dele, o arcebispo Henryk Gadeck, líder do Episcopado Católico Romano da Polônia
Wojciech Polak, primaz da Polônia: mudança e posicionamento rápidoFoto: picture-alliance/AP Photo/C. Sokolowski

A estreia do filme aconteceu num momento de calor político na Polônia, com a aproximação das eleições europeias no final de maio, eleições legislativas no segundo semestre e a eleição presidencial, no próximo ano. O partido governista Lei e Justiça (PiS), que costuma se apresentar como "preservador" da fé e da Igreja, agora se apresenta como força motora na luta contra a pedofilia no interior da igreja católica.

Segundo disse Jarosław Kaczyński durante um comício no qual exigiu penas mais severas, o partido luta contra abusos: "Aqueles que são responsáveis por crianças são punidos de forma especialmente rígida. Isso vale para os padres, mas também para celebridades. Queremos ser severos sem piedade. Mas isso significa que os crimes de alguns padres justificam ataques à Igreja? Que agora é permitido ofender católicos? Não!", exclamou.

Enquanto isso, o governo do primeiro-ministro Mateusz Morawiecki apresentou mudanças na legislação penal. No futuro, autores de crimes de abuso poderão pegar até 30 anos de prisão. A prescrição deverá ser eliminada e a idade de proteção especial das vítimas foi aumentada de 15 para 16 anos.

Fato é que, depois da estreia do filme, não será mais possível guardar silêncio ou varrer o assunto para debaixo do tapete. Até porque os autores planejam uma sequência e deverão lançar também um livro, considerando que há histórias demais para serem contadas apenas em duas horas.

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