"E se fosse o contrário?". Essa frase sempre é repetida pela ex-empregada doméstica Mirtes Renata, a mãe do menino Miguel, que morreu em 2020 depois de cair de um prédio em Recife. Segundo a Justiça, a culpa foi de Sari Corte Real, de família rica e poderosa e ex-patroa de Mirtes, que, apesar de condenada em 2022, continua livre.
Tenho lembrado dessa frase – "e se fosse o contrário?" – quando leio as notícias sobre o acidente que há um mês tem causado justíssima revolta no Brasil. Em 30 de março, o empresário Fernando Sastre de Andrade Filho, de 24 anos, dirigia um Porsche a mais de 150 km/h em uma rua de São Paulo que tinha limite de velocidade de 50 km/h quando bateu no carro de Ornaldo da Silva Vianna, motorista de aplicativo de 52 anos, que morreu pouco depois do acidente.
Além de Ornaldo, o estudante de medicina Marcus Vinícius Machado Rocha, que estava no banco de passageiro do carro dirigido por Fernando, teve ferimentos graves. Até o fechamento desta coluna, Fernando já tinha tido a prisão pedida três vezes, mas continuava livre. Nesta segunda-feira (29/04), o Ministério Público pediu à Justiça a prisão preventiva de Fernando por homicídio doloso qualificado e lesão corporal gravíssima.
Tomara que ele seja preso. Mas, mesmo se isso acontecer, ele já terá tido um mês de liberdade. E, como acreditar que ele vai ficar preso pelo tempo que mereceria, de acordo com a lei, por tal crime?
Desigualdade
Assim como no crime que vitimou o menino Miguel, esse também é um caso cheio de simbolismos. Um jovem dirigindo um Porsche Carrera GTS de 2023, avaliado em R$ 1,3 milhão, bate em um carro de um motorista de aplicativo – uma classe precarizada que reúne cerca de 1,5 milhões de trabalhadores no Brasil, segundo o IBGE – , que dirigia um Renault Sandero avaliado em R$40 mil. Esse é um baita retrato da desigualdade do país. E também da impunidade e da diferença de tratamento que pobres e ricos recebem da Justiça no Brasil.
Em muitos casos, recebemos a mensagem de que rico pode tudo, até causar a morte de outras pessoas, no caso, de trabalhadores. Não importa, ainda mais se a vítima tiver menos dinheiro, fica tudo bem para eles.
Nesse um mês de impunidade, já soubemos de muitas coisas que só aumentam nossa revolta. Vídeos que foram gravados pelas câmeras instaladas em uniformes de policiais (medida superimportante, como esse caso prova) mostraram testemunhas passando pelo local contando que o carro passou em alta velocidade. Elas afirmam também que o acusado pelo crime estava bêbado. Detalhe: a polícia não exigiu um teste de bafômetro. Como assim?
Em vídeos, podemos ver também a mãe do condutor que causou o acidente, Daniela Andrade, tentando tirá-lo da cena de crime. Ela chega e, como se a situação se tratasse de uma travessura de uma criança de 7 anos de idade, sai puxando o filho para ir embora, sem comunicar à polícia. Ela é obrigada a voltar porque uma policial manda os dois voltarem. Depois de passar alguns dados, a mãe convence a polícia de que seu filho precisa ir ao hospital fazer exames, pois ele teria batido a cabeça. "Cada minuto conta", ela diz, ignorando completamente as outras vítimas.
Ela acaba sendo liberada para levar o filho ao hospital. Fala que eles estarão no hospital São Luís, mas não o fez. Ou seja, ele fugiu com a ajuda da mãe. O empresário só apareceu para prestar depoimento 38 horas depois do acidente. Que privilégio é esse que permite que alguém cometa um crime, minta para a polícia na maior cara de pau, fuja e não pague por isso?
E se o causador do acidente fosse o motorista de aplicativo?
"E se fosse o contrário?", repito. O que será que teria acontecido se um motorista de aplicativo, dirigindo um carro a mais de 150 km/h, tivesse atingido o automóvel de um jovem rico de São Paulo e o matado? Ele também teria escapado da cena do crime "de boa"? Seria tratado como um "menino que fez uma bobagem"? Eu duvido, ainda mais se ele demorasse 38 horas para se apresentar para a polícia, após ter fugido do local do acidente.
Acho que todos nós que conhecemos a Justiça brasileira imaginamos que o motorista teria sido preso em flagrante por ter acabado com a vida de um "jovem promissor". Agora, voltando à realidade, a vida do motorista de aplicativo, um trabalhador de 52 anos, não conta? A vida dele não importa?
Até quando os filhos da elite econômica continuarão cometendo crimes e recebendo tratamento privilegiado? Chega. Como diria o rapper Criolo: "meninos mimados não podem reger a nação".
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.