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História

Portugal: Um livro contra o silêncio sobre a guerra colonial

22 de fevereiro de 2019

As vivências e os efeitos traumáticos da guerra colonial continuam a ser um assunto tabu em Portugal. Contra o silêncio, o psicólogo Vasco Luís Curado acaba de lançar um livro com memórias de horror, sofrimento e perda.

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Foto: casacomum.org/Arquivo Mário Soares

Há poucos ex-combatentes portugueses que aceitam falar dos traumas da guerra nas antigas colónias em África, nomeadamente nas frentes de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. São memórias de momentos traumáticos, que muitos evitam recordar ou tornar público. Mas Vasco Bastos, hoje com 71 anos de idade, fá-lo sem tabu.

O soldado do então Batalhão 2909 da Companhia de Cavalaria 2690 revela à DW África um dos mais dramáticos acontecimentos ocorridos durante a missão que cumpriu no norte de Angola, na região dos Dembos, província do Bengo, entre 1970 e 1972.

Vasco Bastos
Trauma da guerra "está sempre presente", afirma Vasco BastosFoto: DW/J. Carlos

"Fomos apanhados em várias emboscadas e [houve] uma que me traumatizou, a mim e não só", conta o ex-combatente. "Íamos a passar, entretanto fomos apanhados por uma mina que estava num trilho. O rapaz, que era ali do Fundão [município do distrito de Castelo Branco, centro de Portugal], passou também, mas ao passar ele pisou aquilo... Desapareceu!"

"Era no meio de uma mata densa, durante a noite", explica emocionado. "Aquilo foi um traumatismo danado. No fundo da mata densa, não tínhamos nada! E tivemos que andar a apanhar os bocadinhos dele para depois o transportar até a uma clareira. Apanhar os bocados do corpo do homem, senhor…!"

Um assunto tabu

Hoje, passados mais de 40 anos, Vasco Bastos é um dos antigos militares do exército colonial português assistido social e psicologicamente pela APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-combatentes Vítimas do Stress de Guerra, criada em 1994.

De 15 em 15 dias, participa numa sessão de terapia de ajuda mútua.

Portugal: Um livro contra o silêncio sobre a guerra colonial

Graças ao apoio prestado pela associação, a sua vida modificou e tem sabido gerir os efeitos dos traumas da guerra, que também afetaram familiares. No entanto, confessa, as vivências daquele período negro não se dissipam com facilidade.

"Para mim, está sempre presente. Ainda cá está e há-de morrer comigo", diz Vasco Bastos.

Na qualidade de psicólogo clínico, Vasco Luís Curado - português nascido em Angola e que viajou de Luanda para Lisboa na ponte aérea de 1975 - recolheu dos seus pacientes, sob anonimato, várias memórias estilhaçadas sobre a guerra colonial. Confirma que há ainda muitas marcas de traumas da guerra.

"Há, mas não em todos", afirma. "A maioria dos estudos aponta que 15% dos combatentes terão sintomas de stress pós-traumático ou alguma alteração psicológica provocada por acontecimentos traumáticos de guerra. Portanto, não são sequer a maioria." Ao todo, nos 13 anos de guerra, quase um milhão de portugueses foram mobilizados.

Por várias razões, a guerra colonial ainda constitui um tabu na sociedade portuguesa, reconhece Luís Curado. "Porque o próprio combatente tem relutância em se expor. Não sente que a população em geral o compreenda", diz o psicólogo. "A guerra ou o serviço militar obrigatório em cenário de guerra retira o indivíduo do seu meio natural de vida, e as experiências que ele ali acumula só podem ser partilhadas pelos camaradas, por outros que passaram pelo mesmo. Agora, a sociedade em geral tem dificuldade em lidar com isso."

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Brandos costumes? "Obviamente que não"

A vontade que a sociedade tem de esquecer o passado colonial e a violência usada nesse passado é outro fator apontado pelo psicólogo. "Porque, apesar de ter havido [a revolução do] 25 de Abril, ainda persiste entre nós aquela mentira salazarista de que somos um povo de brandos costumes. Obviamente que não somos. Como é que se constrói um Império que dura séculos em vários continentes com brandura?! Não é com brandura que isso acontece. É com violência."

"Como nós não queremos olhar para a nossa violência, a violência portuguesa está recalcada", acrescenta Luís Curado. "Porque queremos formar de nós uma ideia de brandura, de colonizador especial, é inconveniente que estes combatentes nos venham relembrar a violência que existiu no Império e na manutenção das colónias."

Contra o silêncio, Luís Curado decidiu dar voz a 48 soldados portugueses que combateram em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. São relatos que revelam diferentes episódios, tormentas e experiências, vividos entre 1961 e 1974, agora narrados no livro "Declarações de Guerra - Histórias em carne viva da Guerra Colonial".

Desta forma, o autor pretende contribuir "para um reconhecimento impedido por divisões profundas na sociedade portuguesa, mais interessada na integração na Europa do que no seu passado colonial".

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