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Série acirra debate sobre releitura da escravidão nos EUA

Stuart Braun
28 de janeiro de 2023

Inspirada em ensaios que ganharam o Pulitzer, "Projeto 1619" argumenta que escravidão foi motivo central da Revolução Americana, que derrotou os colonizadores britânicos. Para críticos, um revisionismo incorreto.

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Menino com bandeira dos Estados Unidos
"Projeto 1619" provocou a ira da extrema direita americana, mas também deixou historiadores de esquerda insatisfeitosFoto: Hulu

"Os primeiros africanos escravizados foram trazidos para cá há mais de 400 anos. Desde então, nenhuma parte da história da América não foi tocada pelo legado da escravidão", diz a jornalista Nikole Hannah-Jones na introdução da série documental O Projeto 1619 – referência ao ano em que os primeiros escravos chegaram aos Estados Unidos.

A série é uma adaptação de ensaios publicados em 2019 com o mesmo título na The New York Times Magazine, que renderam a Hannah-Jones um prêmio Pulitzer. Produzida por Oprah Winfrey, ela foi lançada nesta quinta-feira (26/01) nos Estados Unidos, na plataforma de streaming Hulu.

Os episódios complementam os ensaios originais, com esquetes sobre a vida atual dos afro-americanos, abordando desde a posição dos trabalhadores negros na luta pela sindicalização em armazéns da Amazon à incapacidade das mães negras de ter acesso a serviços de saúde adequados devido ao racismo.

Como os ensaios que a inspiraram, a série se concentra na própria herança afro-americana de Hannah-Jones. Seu pai, que descende de escravos e foi criado no "Estado do apartheid" do Mississippi, serviu ao Exército nos anos 60 com a expectativa que "seu país pudesse finalmente tratá-lo como um americano".

Isso não aconteceu, e ele seguiu trabalhando no setor de serviços durante toda a vida. No entanto, continuou sendo um patriota orgulhoso que sempre hasteava a bandeira dos EUA no jardim em frente à sua casa.

Enquanto isso, a então jovem Hannah-Jones rejeitava essa identidade. "Não entendia como ele podia demonstrar com tanto orgulho seu patriotismo por um país que o havia tratado tão mal", diz ela na série. Mais tarde, ela concluiu que seu pai era a verdadeira encarnação do sonho americano.

"Nosso sangue, suor e lágrimas estão neste solo", afirmou. "Meu pai sabia que ninguém tem mais direito a esta bandeira do que nós, porque lutamos por ela da maneira mais difícil."

Donald Trump lidera reação conservadora

Hannah-Jones recebeu muitos elogios por sua tese sobre os 400 anos de história da escravidão americana e suas consequências sócio-econômicas, mas seu argumento de que a escravidão teve um papel fundamental na construção da nação americana tem sido questionado pela direita e pela esquerda.

Para a esquerda, a tese geral é correta, mas algumas conclusões, especialmente sobre o papel da escravidão na Revolução Americana, ocorrida de 1765 a 1791 e que derrotou os colonialistas britânicos, ganhou peso excessivo – uma crítica que Hannah-Jones aceitou.

Enquanto isso, a extrema direita, incluindo o então presidente Donald Trump, rebelou-se contra essa releitura da história americana, e ligou o Projeto 1619 ao movimento da teoria crítica da raça, seu mais recente alvo da guerra cultural.

"O Projeto 1619 e a cruzada contra a história americana é propaganda tóxica", disse Trump durante um comício em 2019.

Ele então ameaçou cortar o financiamento para escolas na Califórnia que ousaram incluir o tema no currículo, depois que o New York Times anunciou planos de disponibilizar materiais sobre o Projeto 1619 para instituições educacionais.

Dois homens frente a frente, com uma bandeira dos Estados Unidos ao fundo
Apoiador de Donal Trump e manifestante do movimento Black Lives Matter em 2020, em WashingtonFoto: Olivier Douliery/AFP/Getty Images

Em resposta ao argumento de Hannah-Jones, de que a Independência Americana foi declarada em 1776 em boa medida para manter a escravidão – em oposição ao tradicional relato da busca por liberdade – Trump estabeleceu o agora extinto Projeto 1776 para reafirmar a ortodoxia histórica por meio da "educação patriótica".

Para Hannah-Jones, tratou-se de uma decisão política. "A questão controversa mais antiga na América é a raça", disse ela em uma entrevista à rádio NPR.

Questões sobre o papel da escravidão

Mas historiadores da linha mais tradicional e da esquerda também questionaram o argumento de que a Revolução Americana teria sido em grande parte promovida para manter a escravidão, já que os colonialistas ingleses queriam abolir a prática.

Pascal Roberts, um analista sobre política negra baseado na Califórnia e co-apresentador do podcast This is Revolution disse que o Projeto 1619 é uma "polêmica" e não é baseado na "história real".

Ele lembrou do genocídio da população indígena, da escassez dos direitos das mulheres e do limitado direito ao voto dos homens brancos após a Revolução de 1776, apontando que o projeto carecia de uma análise de classe mais ampla sobre a opressão no capitalismo americano.

Cinco historiadores também escreveram em 2019 uma carta aberta ao The New York Times elogiando "todos os esforços para abordar a centralidade duradoura da escravidão e do racismo em nossa história", mas apontando "erros factuais no projeto e no processo que o criou".

Eles disseram que a alegação do projeto de que as 13 colônias americanas sob domínio britânico lutaram uma Guerra de Independência para manter a escravidão é simplesmente "não verdadeira" e pediram que fosse emitida uma correção.

O editor da New York Times Magazine, Jake Silverstein, recusou, respondendo que "o entendimento histórico não é fixo".

Logo depois, a historiadora afro-americana Leslie M. Harris revelou que foi consultora do Projeto 1619 e tinha "vigorosamente argumentado contra" a ideia de que a Revolução Americana tivesse ocorrido em grande parte para preservar a escravidão.

Em um artigo no site Politico, ela disse que, apesar de Hannah-Jones ter continuado a repetir essa afirmação, o Projeto 1619 continua sendo um "corretivo muito necessário" para reorientar o olhar sobre as raízes negras na América.

No entanto, ela disse temer que, ao ignorar seus conselhos, os editores abrissem a porta para os críticos "usarem as afirmações exageradas para desacreditar todo o projeto".

Série lançada em meio a veto a curso afro-americano

Enquanto os políticos republicanos radicais escalavam a sua guerra cultura contra a teoria crítica da raça e a ideia de que o racismo sistemático ajudou a moldar a sociedade nos EUA, o governador da Flórida, Ron DeSantis, proibiu na semana passada o ensino de um curso afro-americano nas escolas do estado.

Isso ocorreu após tentativas de proibir que as escolas incluíssem em seu currículo o romance premiado com o Pulitzer de Toni Morrison, Beloved, que explora o impacto da escravidão em uma família afro-americana após a Guerra Civil Americana.

Diante desse movimento de censura da extrema direita e das críticas atuais ao seu método histórico vindas de todo o espectro político, Nikole Hannah-Jones está determinada a continuar com seu trabalho.

"Você pode proibir o que alguém pode aprender em uma sala de aula, mas não pode impedi-los de assistir a esta série documental e obter essa informação, então ela está realmente chegando em um momento crítico", disse ela nesta semana.