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LiteraturaGlobal

"Sensitivity readers" e a caça à literatura ofensiva

Sarah Hucal
25 de fevereiro de 2023

Polêmica reescrita de obras do autor de "A fantástica fábrica de chocolate" dá destaque a uma nova profissão: "leitor para sensibilidade". Delírio politicamente correto ou peça indispensável no processo de publicação?

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Capa da primeira edição de "A Fantástica Fábrica de Chocolate" e "ovo de ouro"
Os tempos mudam: ao ser lançado em 1964, livro de Roald Dahll não parecia capaz de ofenderFoto: Frederic J. Brown/AFP/Getty Images

Segundo noticiou o diário britânico The Telegraph, a editora Puffin fez centenas de alterações nos livros infanto-juvenis do autor galês Roald Dahl (1916-1990), muito apreciado nos países de língua inglesa e mundialmente conhecido graças a adaptações cinematográfica de suas obras como Matilda ou James e o Pêssego gigante.

Entre outras "atualizações", o gênero dos pequenos Umpa-Lumpas em A fantástica fábrica de chocolate passou a ser neutro; e Augusto Glupe deixou de ser "gordo", ficando apenas "enorme". Parte importante das decisões foram os assim chamados sensitivity readers: leitores críticos com foco específico em conteúdos potencialmente ofensivos.

Um porta-voz da companhia Roald Dahl classificou as mudanças como "pequenas e bem ponderadas". Ainda assim, o anúncio provocou protestos de numerosos representantes do mundo literário, como o autor Salman Rushdie. E também do novo premiê do Reino Unido, o conservador Rishi Sunak, o qual declarou por meio de porta-voz que "obras de ficção devem ser preservadas e não retocadas com aerógrafo".

Independente do lado em que se esteja, a polêmica serviu para colocar em evidência uma profissão relativamente nova, porém significativa: "leitor/a para sensibilidade". Ao serem pagos para ler um livro, seus alvos são todo conteúdo ofensivo, representação falsa, estereótipos, preconceitos ou falta de compreensão por grupos minoritários.

Autor inglês Roald Dahl com dois cachorros
Expressões usadas pelo autor Roald Dahl soam hoje politicamente incorretasFoto: dpa/picture alliance

À caça de nuances dentro dos clichês

"Acho que muita gente está escutando falar desse trabalho no contexto de: 'Ah, a horda woke [alerta para injustiças sociais] está vindo atacar nossa literatura favorita e degradando todos os melhores livros.' Mas isso é um monte de besteira, francamente", assegura Helen Gould, escritora profissional baseada no Reino Unido que exerce a função desde 2017.

"Um sensitivity reader é só um tipo diferente de redator, e apenas ficamos alertas para coisas que talvez não estejam sendo comunicadas do modo que o autor pretendia", explica. Ela se iniciou na profissão ao ajudar um amigo detectar conteúdos ofensivos num jogo narrativo de tabuleiro, no estilo Dungeons & Dragons, que estava desenvolvendo. Desde então, ela tem revisado textos das mais diversas disciplinas, inclusive ficção.

"Até fiz um pouco de não ficção para quem estava contando as histórias de gente de cor, mas sem ser de cor, por exemplo", conta Gould. "Então eles podem estar fazendo piadas irônicas, ou coisa assim, no texto, e o meu trabalho é dizer: 'Oh, não pense que esta vai colar.'"

Ao contrário do que muitos pensam, a "leitora para sensibilidade" não atravessa o texto com uma caneta vermelha decretando: "Ah, não se pode dizer isso!", entafiza. Ela aborda cada texto tendo duas perguntas em mente: "Isto tem potencial de causar dano? E, caso positivo, como posso fazer que não cause?"

Aí ela procura nuance e complexidade, por exemplo em figuras que pareçam um tanto bidimensionais e capazes de perpetuar estereótipos. "Eu, digo, talvez: 'Esta é uma personagem negra que está quase sempre zangada. Você considerou dar outra dimensão à personalidade dela?'" No fim, Helen Gould envia suas ressalvas ao editor, que então as repassa à autora ou autor, que em geral é receptiva/o e leva em consideração as sugestões.

"Não se trata de reescrever o Otelo de Shakespeare"

Em seu trabalho para a agência Salt & Sage, que contrata redatores e sensitivity readers freelancers, Gould se especializa em raça e política: em sua tarefa atual, por exemplo, os autores estavam preocupados de reproduzir atitudes colonialistas. Seus colegas cobrem diferentes áreas de expertise, de identidades não binárias a transtorno de estresse pós-traumático a ansiedade e depressão.

"Alguns vão ser melhores em examinar tópicos com personagens trans, outros com personagens judaicas. Tudo vai depender da experiência vivida de cada um e da expertise." É comum ela indicar aos autores sensitivity readers com especialidades diferentes, se lhe parece que poderão ajudá-los mais.

Para Gould, a função de um "leitor para sensibilidade" é mais útil quando se trata de obras ainda não publicadas. Ela acha frustrante quando lhe pedem para ler algo que já foi publicado previamente.

"Pessoalmente, não acho que a 'leitura sensível' seja útil se a obra já está publicada, pois ela já está no mundo – o cavalo já fugiu do estábulo, por assim dizer." Ela considera ideal o que a multinacional Disney fez com seus desenhos animados mais antigos, que em parte contêm clichês racistas: colocar uma advertência no início dos filmes de que seu tratamento de certos temas é insensível.

O mesmo poderia ser feito com livros, propõe: "Se a gente quiser voltar realmente lá longe, eu não diria para modificar o Otelo de Shakespeare por representar um homem negro como propenso à raiva e estereotipicamente violento."

"Mas eu diria para se ter esses estereótipos em mente ao ler a peça: mantenha em mente o contexto da época, seu racismo, e o fato de que o autor era um cara branco, porque isso pode ajudar a ter uma compreensão mais profunda do texto e do que ele está tentando dizer."

"Leitora para sensibilidade" Helen Gould
"Leitora para sensibilidade" Helen Gould se especializa em raça e políticaFoto: Privat

"Leitores para sensibilidade" vieram para ficar?

Gould não arrisca predizer se sua profissão se tornará padrão no setor ou se, com o tempo, desaparecerá no esquecimento: a seu ver, a coisa pode ir nas duas direções.

"Por um lado, 99% das editoras e redatoras com que tenho trabalhado estavam realmente dispostas a representar da forma correta os grupos e personagens marginalizados, e queriam se assegurar que os leitores iam ter prazer com o trabalho delas, etc.. Sim, mas recentemente a gente viu uma espécie de recaída de direita contra os vários progressos parciais que fizemos desde os anos 90."

Numa pesquisa sobre diversidade e inclusão publicado pela britânica Publishers Association, apenas 17% dos consultados não eram brancos, e faltava diversidade de classe. Como expressou num artigo da plataforma online de pesquisa The Conversation, para a autora Sarah Jilani, docente de inglês da City, University London, colaboração é vital na cena editorial, e sensitivity readers são parte necessária no processo de levar o manuscrito até a publicação, sobretudo considerando a falta de diversidade no setor.

Helen Gould quer que o mundo saiba que ela e seus colegas existem para ajudar as/os autoras/os, não para censurá-las/os. Na atual era de midia social, pode ser "assustador" publicar uma obra, pois ela se torna imediatamente objeto de escrutínio. E nesse contexto: "Podemos ajudar um/a autora/a a ter confiança de que abordou adequadamente um tópico."