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População de rua teme fome durante pandemia

João Pedro Soares do Rio de Janeiro
25 de março de 2020

Sem acesso a cuidados de prevenção, moradores de rua do Rio ficam expostos a coronavírus. Com comércio fechado e suspensão de projetos sociais, conseguir comida fica mais difícil. Nas favelas, falta de água preocupa.

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Paulo dos Santos, morador de rua do Rio de Janeiro
"Quem tem emprego consegue ir pra clínica particular. O morador de rua que pegar isso vai morrer", diz Paulo dos SantosFoto: DW/J. Soares

Sobre o edredom que Célia Regina Figueiredo, de 47 anos, usa como cama, havia um panfleto amassado. Eram instruções entregues por um projeto social que distribui cafés da manhã a pessoas em situação de rua no Rio de Janeiro. Por precaução, os alimentos passarão a ser entregues em kits, e os voluntários usarão máscaras de proteção. Foi a única orientação recebida por Célia e outras pessoas que habitam as ruas da Lapa, bairro que atrai turistas do mundo inteiro, sobre o novo coronavírus. "O Estado fala: fica dentro de casa. E nós, que moramos na rua? A precaução que estou tomando é deitar no chão e continuar aqui", diz.

A situação exposta por Célia revela a distância entre as orientações das autoridades de saúde e a realidade dos brasileiros que vivem em quadro de vulnerabilidade social. Equipes de promoção de saúde da prefeitura carioca têm feito contato com a população de rua para transmitir mensagens sobre cuidados básicos de higiene e locais que podem ser procurados para essa finalidade. Entretanto, o alcance do trabalho parece limitado pela viabilidade das soluções apresentadas.

"Tem um lugar da prefeitura onde a gente pode ir se higienizar, mas é para um grupo pequeno de pessoas, e não acho que seja um lugar muito bom para quem é tranquilo e de paz", comenta Eduardo Guimarães, de 30 anos.

“Vizinho" de Célia, ele endossa que ninguém do grupo que vive sob a marquise do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi procurado por representantes do poder público para receber orientações. “Estamos vivendo por Deus, que nos protege e guarda. A gente deita e dorme todos os dias na calçada, onde todo vírus e bactéria vive. Se nada me pegou até hoje, acredito que essa doença não vá chegar à minha pessoa."

Eduardo acompanha o noticiário sobre o avanço da pandemia no Brasil pelas capas dos jornais expostas em uma banca na calçada onde ele expõe para venda objetos variados que garimpa no lixo. A repercussão dos casos iniciais em pessoas do mundo político e de maior renda transmite a impressão de que o problema está distante do seu universo.

Celia Regina Figueiredo, moradora de rua Rio de Janeiro
Célia Regina Figueiredo lê folheto sobre pandemia: "O Estado fala: fica dentro de casa. E nós, que moramos na rua?"Foto: DW/J. Soares

"A gente tem falado que essa doença só pega fresco", diverte-se Paulo dos Santos, de 28 anos. Apesar do bom humor, o morador das ruas da Glória, bairro contínuo à Lapa, está preocupado. "Quem tem emprego consegue ir pra clínica particular. O morador de rua que pegar isso vai morrer."

Entretanto, o maior temor de Paulo e de outras pessoas que vivem em situação de rua é a fome. Além de receber ajuda de diversos moradores da região, ele conta com as quentinhas entregues por clientes de um restaurante para se alimentar diariamente. "São oito horas da noite e estou almoçando. Não costuma ser assim."

Diversas ONGs e instituições religiosas que organizavam distribuição de alimentos suspenderam atividades a fim de repensar a estratégia mais segura de realizar as entregas. Há muitos idosos atuando nesses projetos, o que implica a necessidade de conseguir novos voluntários e garantir a proteção de todos, inclusive os beneficiários das iniciativas, que costumam se aglomerar nos locais das refeições.

O fechamento de estabelecimentos comerciais na cidade a partir desta terça-feira (24/03) deve tornar a vida da população de rua ainda mais difícil em meio à pandemia. Além de comprar alimentos nesses locais, os pontos de comércio representam a única forma de conseguirem água – não filtrada – para hidratação e higienização.

Procurada pela DW Brasil, a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio informa que segue em planejamento para estruturar ações de atenção à população de rua. O órgão avalia a utilização do Sambódromo como ponto de acolhimento e oferta de serviços de higiene. Há outras medidas previstas, como a distribuição de 4 mil kits de higiene; a abertura de 400 vagas em hotéis para idosas, gestantes e mães com crianças em situação de rua e a distribuição de 20 mil cestas básicas para trabalhadores informais, não necessariamente em situação de rua.

A atual gestão da prefeitura do Rio não atualizou, nos últimos quatro anos, o levantamento da população de rua da cidade. Um levantamento da Defensoria Pública Estadual estima que sejam ao menos 15 mil pessoas.

Favelas sem água

A confirmação de um caso do novo coronavírus na Cidade de Deus no último domingo acendeu o alerta da vulnerabilidade nas favelas cariocas. O desabastecimento de água é um problema recorrente nas favelas cariocas e se agrava durante o verão. Carregar baldes de água em longas subidas e descidas faz parte da rotina dos moradores.

Um levantamento da Defensoria Pública estima que o problema afete 30 bairros da capital. No contexto atual, a falta de água torna impossível a manutenção dos cuidados preventivos básicos contra o coronavírus. Algumas comunidades chegaram a ficar dois meses desabastecidas, como no Morro dos Prazeres. Moradora da comunidade e ativista da Rede de Comunidades Saudáveis, Cris dos Prazeres relata enfrentar dificuldades para construir mensagens que se adequem à realidade da favela.

"Imagina uma mulher de 23 anos desempregada com quatro crianças sem creche num cômodo de seis metros quadrados. Como vou falar para ela não sair de casa?”, questiona.

Eduardo Guimarães, morador de rua do Rio, ao lado da esposa
Eduardo Guimarães ao lado da esposa: "A gente deita e dorme todos os dias na calçada, onde todo vírus e bactéria vive"Foto: DW/J. Soares

Com a frágil presença do Estado nesses territórios, moradores têm se mobilizado entre si para receber doações e levar orientações em uma linguagem próxima ao universo de seus vizinhos. No Complexo do Alemão, onde vivem cerca de 70 mil pessoas, o gabinete de crise formado pelos coletivos Voz das Comunidades, Papo Reto, Ocupa Alemão e Instituto Raízes em Movimento criou até um funk para ser tocado nas rádios comunitárias e carros de som.

"Tá ligado no coronavírus? Deixa eu te passar a visão. Essa doença triste que afetou nosso mundão. Vamos ter consciência e fazer toda a prevenção para nossa comunidade. Lave as mãos frequentemente, com água e sabão. Evite sair de casa para não ter aglomeração", diz a letra.

Atuar junto às populações mais vulneráveis em contextos de crises e emergências é especialidade da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF). Com experiência em diferentes países da África e América Central, a promotora de saúde Lia Gomes explica que a adaptação das diretrizes de prevenção ao público-alvo das mensagens é fundamental para uma estratégia bem-sucedida.

"Cada peculiaridade de um contexto e cada especificidade de um grupo vulnerável demanda uma adaptação única das orientações", afirma. A promotora de saúde lembra ainda que o investimento maior em prevenção neste momento inicial significa menor sobrecarga e demanda por recursos nos sistemas de saúde, seja em leitos ou tratamento.

"Na MSF sempre se parte do principio de que é preciso escutar e engajar as pessoas que vivem a crise na estruturação de uma resposta a ela. Para além da preocupação com os grupos de risco da doença, a prioridade é sempre dada àqueles em situação de maior vulnerabilidade, o que, para nós, está relacionado ao acesso a comida, água e condições seguras de higiene", detalha.

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