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O que está em jogo no "PL do Veneno"

29 de novembro de 2022

Projeto de lei facilita registro de novos agrotóxicos e aumenta o poder do Ministério da Agricultura na análise, enquanto reduz atribuições do Ibama e da Anvisa. Votação em Comissão do Senado poderá ser nesta quarta.

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Foto mostra parte lateral de um trator aplicando agrotóxico em uma plantação
Com as novas regras, Ibama e Anvisa perdem espaço na aprovação de novos agrotóxicosFoto: Patrick Pleul/dpa-Zentralbild/dpa/picture-alliance

A Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado iniciou nesta terça-feira (29/11) a discussão do Projeto de Lei 6299, de 2002, que altera as regras de registro de agrotóxicos e foi apelidado por organizações da sociedade civil como "PL do Veneno".

Havia chance de o texto ser votado nesta terça-feira, mas senadores da oposição pressionaram para que a votação fosse adiada para quarta-feira, sugestão acatada pelo presidente da CRA, Acir Gurgacz (PDT-RO).

O adiamento servirá para que integrantes da CRA se reúnam com membros do governo de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva para discutir o tema.

O projeto de lei foi proposto pelo então senador Blairo Maggi, ex-ministro da Agricultura do governo Temer e um dos maiores exportadores de soja do país. O texto já foi aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022. Se receber o aval da CRA, segue para avaliação do plenário do Senado.

O que propõe o texto

O chamado "PL do Veneno" traz mudanças significativas nas regras de registros de agrotóxicos – palavra que, segundo o texto, deve ser substituída a partir de agora por pesticidas.

Dentre as alterações apontadas como uma das mais preocupantes está a retirada de trechos da legislação em vigor que proíbem o registro de agrotóxicos com componentes que provoquem câncer, mutações ou distúrbios hormonais. A atual lei, de 1989, estabelece que não são admitidos produtos com características "teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas".

No novo texto, esses termos foram cortados, e a proibição se resume a produtos que apresentem "risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente".

Outra mudança importante é a redução do poder da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na análise dos pedidos de aprovação de agrotóxicos, e o aumento do poder do Ministério da Agricultura no trâmite.

Hoje, os três órgãos têm igual poder na aprovação de novos agrotóxicos. Segundo o texto em análise, a Anvisa e o Ibama passariam a subsidiar o Ministério da Agricultura com suas análises, que teria a palavra final.

Além disso, o projeto estabelece um prazo máximo de dois anos para que um novo produto seja analisado, e a concessão de licenças temporárias pelo Ministério da Agricultura caso esse prazo não seja cumprido.

Terminologia e hierarquia das decisões

Para Larissa Bombardi, pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), a flexibilização faz com que o "pouco que existia de princípio de precaução" desapareça.

"Quando se fala em risco inaceitável, abre-se uma janela de discussão que não fecha nunca. O que é risco aceitável ou inaceitável? Um risco de causar câncer é sempre inaceitável", explica Bombardi à DW. 

Autora do atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, Bombardi pesquisa, na Universidade Livre de Bruxelas, como o lobby da indústria de agrotóxicos influencia as decisões políticas brasileiras.

Para Christian Lohbauer, presidente da CropLife Brasil, organização que reúne gigantes do setor como Bayer e Syngenta, o novo texto moderniza a legislação e não retira o poder de outros órgãos reguladores, como Ibama e a Anvisa.

"Não tem como aprovar um novo produto sem que Ibama e Anvisa avaliem. O que mudou foi que a palavra final é do Ministério da Agricultura", pontua Lohbauer à DW.

É justamente essa centralização que preocupa pesquisadores e entidades da sociedade civil.

"Na legislação atual, os três ministérios têm poderes iguais, cada um analisa um aspecto: o da Agricultura atende as demandas do setor. Anvisa olha para saúde pública, e o Ibama, para o meio ambiente. [Agora] eles continuam no processo, mas todo o controle está na Agricultura", argumenta Suely Vaz, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.

A maneira como as novas regras foram escritas também acendeu um alerta em Bombardi. "Antes, o texto da legislação era claro quanto à paridade de ministérios. Agora, o texto está difuso. Ele abre margem para que o [Ministério] da Agricultura apareça de forma hierárquica. Não há mais um equilíbrio", analisa.

Registro temporário

Essa nova estrutura permite que o Ministério da Agricultura libere o registro temporário de novos agrotóxicos mesmo se Ibama e Anvisa não tiverem concluído suas análises de risco.

Trator aplica veneno em uma lavoura ao lado de uma rodovia.
Se aprovação do produto não sair em no máximo dois anos, agrotóxico deve receber registro temporárioFoto: DW/Nádia Pontes

Para especialistas ouvidos pela DW, o próprio conceito de análise de risco fica amplo e indefinido. O texto considera, por exemplo, que a gestão deve "ponderar fatores políticos, econômicos, sociais e regulatórios" quando o assunto é avaliação de risco.

"Isso não faz sentido. É como se a nova lei trouxesse uma espécie de 'cheque em branco' sob esse rótulo de análise de risco", critica Vaz.

Com as mudanças, caso o pedido de liberação de um novo agrotóxico não tenha parecer conclusivo expedido no prazo de até dois anos, o Ministério da Agricultura é obrigado a dar um registro temporário.

É preciso, no entanto, que o produto seja empregado em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne 37 nações com restrições diversas.

"Isso é uma grande mudança. No Brasil, demora-se até oito anos para aprovar um novo produto. É tanta demora, que o país perde o ciclo tecnológico e o produtor continua usando produtos velhos", comenta Lohbauer, da CropLife.

"Esse registro temporário é uma estratégia para o desmonte [da legislação]. A OCDE tem países como Japão, mas também tem Chile, Colômbia e México, que estão sujeitos às mesmas pressões que o Brasil e sofrem impactos de agrotóxicos como aqui", ressalta Bombardi.

Flexibilização de lei para aumentar vendas

Realização de testes que comprovem a segurança do uso de um componente e a análise dos riscos à saúde humana não são processos simples. Eles são demorados e complexos, e um dos limitadores para que um parecer definitivo possa ser emitido num prazo mais curto.

Até mesmo substâncias usadas há décadas nas lavouras, como o glifosato, podem apresentar problemas tardios. É o que mostram casos reunidos nos Estados Unidos.

Em 2020, a alemã do setor químico Bayer anunciou que pagaria mais de 10 bilhões de dólares para encerrar cerca de 95 mil processos movidos por americanos relacionados ao herbicida Roundup, que contém glifosato. O produto produzido pela Monsanto – adquirida pela Bayer em 2018 – é associado ao desenvolvimento de câncer.

Um dossiê técnico e científico assinado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) aponta o interesse da indústria em flexibilizar a lei para aumentar as vendas de agrotóxicos, o que segundo os autores poderia levar ao aumento da contaminação dos trabalhadores rurais, da população e da natureza, sem contrapartidas de proteção à saúde e ao ambiente.

"É um perigo para o consumidor. Temos uma exposição crônica da população quando se trata de nível de resíduo nas águas e nos alimentos quando se compara com a União Europeia. Ao invés de haver uma modernização da lei que restrinja o uso de substâncias perigosas, a lei aumenta o risco", analisa Bombardi.