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"'Não' à nova Constituição é tragédia política no Chile"

5 de setembro de 2022

Para especialista, rejeição à proposta constitucional é resultado de um processo falho que teve pouco diálogo com a sociedade e muita desinformação. "Constituição chilena entraria para história como a mais progressista."

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Chilenos carregam cartaz contrário à proposta de nova Constituição no Chile
Foto: RAUL ZAMORA/ATON CHILE/IMAGO

Em eleição histórica, o Chile rejeitou neste domingo (04/09), por esmagadora maioria de 61,9%, a proposta do texto constitucional que substituiria a atual Carta Magna, promulgada em 1980 e herança da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

É o desfecho de um processo iniciado em outubro de 2019, quando dezenas de milhares de chilenos tomaram as ruas para demonstrar sua insatisfação com o governo e as condições de vida no país. O movimento desembocou em um plebiscito um ano depois, em que 78,3% votaram pela elaboração de uma nova Constituição e 79% apoiaram a criação de uma Assembleia Constituinte para este fim.

Embora a reprovação do texto já fosse esperada – pesquisas de opinião indicavam favoritismo do "não" –, o resultado numérico – 7,8 milhões – surpreendeu a especialista em processos constitucionais Ester Rizzi, que acompanhou o caso chileno de perto e falou de Santiago à DW Brasil.

Professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Rizzi atribui a derrota – uma "ressaca" e "tragédia política", nas palavras dela – a um processo de construção de legitimidade falho, causado por um calendário de trabalhos apertado e inexistência de plebiscitos intermediários, que dariam maior respaldo popular ao texto.

"A ideia de um plebiscito final já torna difícil a aprovação do texto. É difícil gostar dele inteiro, nos seus detalhes", pontua.

Ela discorda, contudo, que a reprovação popular ao texto seja um sinal de que a esquerda chilena esteja descolada da realidade. "O quórum de aprovação era muito alto, houve negociações para conseguir aprovar os textos", afirma.

Entusiasta da proposta constitucional, Rizzi aponta ainda campanhas de desinformação e os dois anos decorridos entre os protestos e a apresentação do texto como fatores adicionais que podem ter levado à rejeição.

Segundo ela, o presidente Gabriel Boric terá dias difíceis pela frente. "Muita energia política foi investida nesse processo, e isso de alguma forma se perde", lamenta. "O processo está no início de novo. Não está nem certo se uma nova Constituição existirá."

DW Brasil: O resultado do plebiscito constitucional surpreende ou já era esperado?

Ester Rizzi: O que surpreende, talvez mais do que o resultado, é a margem. Foram 61,9% contrários, uma votação histórica na maior eleição chilena [diferentemente de votações anteriores, desta vez o comparecimento às urnas era obrigatório].

O resultado não é exatamente uma surpresa. A impressão que se tinha é que o "aprovo" estava numa ascendente, com chance de passar. Embora as pesquisas apontassem desde maio a vitória do "rejeito", tinha lá uma margem. E essa margem vinha diminuindo, então tinha uma esperança.

Não seria um indício de que talvez a esquerda esteja um pouco descolada da realidade?

A esquerda no Chile são vários grupos. Eles estão em disputa, têm muitas nuances. Seria injusto afirmar isso. Acho que [o resultado] tem a ver com não se ter construído legitimidade para esse texto constitucional ao longo do processo. E tem razões de desenho institucional para isso. A ideia de um plebiscito final já torna difícil a aprovação do texto. É difícil gostar dele inteiro, nos seus detalhes.

No regimento da Convenção Constituinte havia a previsão de um plebiscito intermediário que trataria de temas que não tivessem obtido dois terços dos votos, que era o quórum para aprovação, mas tivessem obtido três quintos. Teria sido uma boa ideia, porque aquece o debate e aumenta a legitimidade. Mas eles queriam cumprir o prazo de um ano que estava previsto no acordo de 2019, por isso não deu tempo de fazer esse plebiscito intermediário.

Como o quórum de aprovação era muito alto, houve negociações para conseguir aprovar os textos. A proposta não está descolada da realidade, mas faltou construir processos de legitimação.

Por que, em um país onde quase 80% da população votou por uma nova Constituição, a proposta foi rejeitada pela maioria?

A passagem do tempo pode ter esfriado esse impulso. O processo da Convenção Constitucional também foi muito ensimesmado – eles fizeram um procedimento, talvez, muito disciplinado e pouco político, com pouco diálogo com a sociedade.

Tem muita coisa bonita no texto, a começar por chamar o Chile de Estado social democrático de direito, a paridade de gênero, os direitos sociais, direito à saúde, educação, previdência, assistência, a proteção do meio ambiente.

Eu não culparia o texto. Ele é bastante democrático, mas criou-se uma narrativa de relação com ditaduras de esquerda. Tinha uma confusão com um autoritarismo, que não era o mesmo do Pinochet. Foi dito que o país iria virar uma Chilenzuela [alusão à Venezuela]. De alguma forma, eles conseguiram associar essa nova Constituição a um processo autoritário, inclusive usando a estética do "Não", a campanha para o plebiscito de 1988 que pôs fim ao governo Pinochet.

Tinha também uma coisa de achar que a Constituição dividia as pessoas, punha em risco a unidade do Chile. Outra ideia que pegou é a de que essa Convenção Constitucional era incompetente. A mensagem da campanha contra não era "não queremos uma nova Constituição", era "essa Constituição não é a nossa". Não é uma contradição.

O que o resultado de hoje representa para a sociedade chilena?

Acho que é uma tragédia política. Deixa o governo Boric e o Chile numa situação bastante difícil. Muita energia política foi investida nesse processo, e isso de alguma forma se perde.

A Constituição chilena ia passar para a história como a mais progressista, a primeira do mundo a ter paridade de gênero. Teria um caminho para transformar a vida das pessoas. Agora, o que elas terão no dia seguinte é uma baita ressaca de um processo em que se investiu muita energia e que naufragou, né? É uma ressaca parecida, talvez, com a que parte da sociedade brasileira teve com a eleição do Bolsonaro. São cenários de incompreensão dessa distância política.

Acha que houve muita desinformação nessa campanha e que ela teve algum efeito sobre a população?

Sim. A campanha contra foi muito descentralizada do ponto de vista da produção do conteúdo, então tinha de tudo. E teve três vezes mais financiamento do que a campanha pela aprovação.

Essa coisa de chamar de Chilenzuela, de fazer referência a regimes autoritários de esquerda, estava muito longe do que é a proposta que está no texto. Diziam que essa Constituição iria dividir o Chile politicamente, ao fazer as pessoas brigarem sobre política, mas também com o reconhecimento das terras e da cultura indígena.

Tem um artigo que diz que é direito das mulheres ter ou interromper uma gravidez de forma saudável, só que o texto não fala em número de semanas, isso seria definido em lei complementar. Aí disseram que a Constituição defende que pode abortar até nove meses, o que é bizarro, porque não é isso que está dito. É uma desinformação, uma interpretação maldosa, distorcida e absurda de um texto legal.

De todas as doações privadas para a campanha do plebiscito registradas pelo Serviço Eleitoral, 90% vêm dos opositores do projeto. Por quê?

Acho que essa Constituição incomodava posições econômicas privilegiadas constituídas no Chile. A classe alta estava incomodada – só não sei se ela estava incomodada com o que ela disse que estava incomodada. Teve uma camuflagem. Porque o Chile se tornar um Estado social democrático de direito, garantidor de direitos sociais, que constitucionaliza questões trabalhistas, isso muda o gasto e o papel do Estado na sociedade, transforma profundamente o paradigma neoliberal. E isso apareceu pouco no debate, nas campanhas. O que apareceu foi a plurinacionalidade, o Senado, questões morais ligadas ao aborto. A questão dos direitos sociais não foi enfrentada – acho que de forma tática, porque seria mais difícil ganhar votos. Por trás desse financiamento todo tem uma concepção diferente do que o Estado deve fazer na sociedade, somada à perda de privilégios como poder econômico.

O que deve vir agora?

Boric fala que haverá uma nova Constituição; que o plebiscito de 2020, com 78% da população chilena dizendo que quer uma nova Constituição, é um símbolo muito claro de que a Constituição de 1980 morreu. Ela permanece vigente enquanto não houver outra, mas há um desejo político. Tem só um probleminha: para fazer um processo constituinte precisa de uma alteração na Constituição. Isso requer um quórum de dois terços no atual Congresso. Acho que vai ser difícil. Ele tem uma sinuca política para enfrentar nos próximos dias e meses, que é fazer andar esse novo processo constituinte, manter o governo funcionando e não ficar muito contra a parede com a direita.

Se a campanha contra não negou o desejo popular por uma nova Constituição, a oposição também não estaria um pouco sob pressão para sentar-se à mesa de negociação com Boric?

Quem tem pressa de começar um processo é o Boric. A direita ganhou legitimidade, quer aproveitar este período e vai usar essa vitória como moeda de negociação. Não tenho certeza de que a oposição realmente queira uma nova Constituição. Acho que foi uma boa tática de marketing – até porque a direita mais radical, que defendeu a rejeição no plebiscito de outubro de 2020, estava financiando essa campanha agora e não apareceu no debate público. Acho que é mais um discurso do que um compromisso político.

Tem um problema de legitimidade com a Constituição de 1980 também, mas acho que eles vão cobrar caro a reabertura desse processo. Provavelmente não vai haver tantas cadeiras para indígenas – nessa convenção foram 17 –, nem possibilidade de participação de independentes, por exemplo. Então, se houver outra constituinte, provavelmente só pessoas vinculadas a partidos vão participar.

Foi uma somatória de desenhos institucionais que possibilitaram exatamente essa composição. Essa conjuntura não haverá mais. Acho que a oposição vai fazer exigências de quórum, procedimentais, que provavelmente vão mudar o resultado ou deixar a correlação de forças dentro da convenção mais garantida para os conservadores, e talvez exigências no governo.

Me parece que é um caminho difícil. Não é impossível, mas eu acho que vai ter uma negociação política difícil, com custos para o governo Boric bem altos.

Que pontos desse texto você acha que devem ser mantidos em uma nova proposta?

Não tem nada garantido. O processo está no início de novo. Essa Constituição, tal como ela foi feita, foi inteiramente rejeitada e um novo processo político vai ser aberto. Não está nem certo de que uma nova Constituição existirá.