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'O cemitério de Praga'

6 de novembro de 2011

O novo romance do escritor italiano leva às profundezas do século 19 e está repleto de conspirações. O protagonista é um salafrário. E a trama manda um recado para alguém sentado no palácio do governo em Roma.

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Umberto Eco: símbolo da literatura pós-moderna
Umberto Eco: símbolo da literatura pós-modernaFoto: Léa Crespi, 2009

Quase 30 anos se passaram desde que o professor italiano de semiótica Umberto Eco, na época conhecido somente pelo público especializado, lançou o seu romance O nome da Rosa. O livro foi um best-seller e o nome do autor se tornou símbolo da literatura pós-moderna – ou seja, uma literatura que dissipa, de forma consciente, as fronteiras entre os fatos e a ficção.

Desde então, Eco se destaca por esse tipo de escrita. Seu novo romance, Cemitério de Praga, não é exceção. Num posfácio, Eco insiste que somente o protagonista é fictício. Todos os outros personagem teriam base histórica – eles "realmente existiram e disseram e fizeram o que eles aqui dizem e fazem", declarou o escritor.

E por meio dessas figuras, Umberto Eco conduz o leitor às profundezas do século 19, em grande parte narrado pelo personagem principal Simone Simonini – que cresceu na Itália, reside em Paris, mas não pertence verdadeiramente a nenhum lugar.

Ele odeia tudo e todos

Se houvesse um ranking dos mais repulsivos protagonistas da história da literatura, Simone Simonini teria excelentes chances de ocupar uma das primeiras posições. Ele odeia tudo e todos: os alemães ("O nível mais baixo imaginável da humanidade."), os franceses ("Eles são maus. Eles matam pelo tédio."), os italianos ("O italiano é traiçoeiro, mentiroso, covarde, traidor."). Além disso, ele odeia as mulheres, os jesuítas, os maçons, os comunistas e, principalmente, os judeus.

No decorrer de 520 páginas, Simonini falsifica, espiona e conspira – sem se coibir nem mesmo de assassinato. Na vida desse homem só existe uma coisa que ele ama com devoção: a boa cozinha. Nem mesmo o progresso tecnológico lhe interessa. "A única invenção nova e interessante do novo tempo é uma espécie de vaso de porcelana, em que é possível realizar sentado as necessidades fisiológicas."

Um "tour de force" através da história

Com grande apreço aos detalhes, Eco descreve as ações de espionagem e falsificação de seu protagonista. Simonini conspira contra as tropas do herói nacional italiano Giuseppe Garibaldi. Ele faz o papel de agente provocador, que em nome do governo napoleônico provoca ataques a bomba anarquistas em Paris, e falsifica um documento, incriminando o capitão judeu Alfred Dreyfus como espião.

A principal obra de Simonini, no entanto, são os famigerados Protocolos dos Sábios de Sião, um escrito difamatório claramente falsificado que foi usado por todos os tipos de antissemitas, por nazistas, por radicais islâmicos até mesmo por membros de seitas new age como prova de uma conspiração judaica mundial.

Eco procura mostrar que os poderosos sempre precisaram de bodes expiatórios. Perguntado por Simonini sobre o motivo da encenação de uma conspiração judaica, o cliente russo responde: "Eu não quero que meu povo direcione sua insatisfação contra o czar. Por esse motivo, ele precisa de um inimigo. (…) Por isso os judeus: eles nos foram indicados pela antevisão divina, então vamos usá-los, pelo amor de Deus, e oremos para que haja sempre alguns judeus, que possam ser temidos e odiados. Precisamos de um inimigo para dar ao povo a esperança."

Do czar a Berlusconi

Para os leitores italianos, é óbvia a alusão contemporânea, e Eco não faz esforço para evitar a impressão de que o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, também está na mira. Berlusconi ainda conta como mérito seu o fato de ter salvado a Itália dos comunistas, apesar de quase não haver mais comunistas no país. Há "pelo menos dois jornais na Itália ligados a Berlusconi que divulgam todos os dias notícias falsas e infames", disse Eco ao jornal berlinense Tagesspiegel.

O livro de Eco deixa claro que nosso complexo mundo baseia-se numa série de afirmações, cujo verdadeiro conteúdo nós dificilmente ou nada apreciamos. E assim, a sua advertência diante dos perigos das palavras se torna muito óbvia. Mas em alguns capítulos de Cemitério de Praga, Eco cai em sua própria armadilha.

Pois a trama assume um papel secundário e o autor se entrega, por muitas e muitas páginas, à narrativa histórica – como o "risorgimento" italiano. Ao ler tais passagens historicamente corretas, mas cansativas, o desejo é que Eco se depare com um falsificador inteligente, que transforme a história real em uma emocionante ficção.

Cemitério de Praga (2011) foi recentemente lançado no Brasil pela Editora Record.

Autor: Martin Muno (ca)
Revisão: Mariana Santos