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SociedadeFrança

Motins na França: Passado colonial e racismo são razões?

Marina Strauss
4 de julho de 2023

Por um lado, os tumultos dos últimos dias na França parecem ter diminuído. A ira, no entanto, não. E a questão do racismo, ligada ao passado colonial do país e frequentemente ignorada, voltou à tona.

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Policiais observam manifestantes vestidos de preto, em meio ao fogo e à fumaça dos protestos em Nanterre, no subúrbio de Paris.
Protestos sacudiram diversas cidades francesas e trouxeram novamente ao debate questões raciais e do passado colonial do paísFoto: Christophe Ena/AP/dpa

Janelas quebradas, carros em chamas, ataque à casa de um prefeito. Essas foram apenas algumas das várias cenas de violência que ocorreram na França nos últimos dias. Em todo o país, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas, expressando sua raiva às vezes de forma violenta, pelo assassinato de Nahel, 17 anos, adolescente de ascendência argelina morto a tiros por um policial em uma blitz de trânsito na última terça-feira (27/06).

Os confrontos entre manifestantes – jovens, em sua maioria – e a polícia levantaram questionamentos sobre a força dos distúrbios e a destruição aleatória.

Outro tema, porém, também surgiu: o fato de como o assassinato de Nahel e a consequente ira que se espalhou pelas ruas estão ligados ao racismo sistêmico na sociedade francesa e ao longo passado colonial do país.

O presidente da França, Emmanuel Macron, classificou o assassinato de Nahel como "indesculpável" e "inexplicável". Uma descrição da qual Crystal Fleming, professora de sociologia da Universidade Stony Brook, em Nova York, discorda: "Não é inexplicável. Não é um mistério. É racismo", afirmou à DW.

Fleming acrescentou que os protestos e tumultos que se seguiram aos tiros mortais disparados pela polícia foram "uma reação ao racismo francês que está ligado ao colonialismo". Ambos, ela diz, são tipicamente negados e apagados [da memória coletiva] pelas autoridades e políticos franceses, "apesar de séculos de opressão racial de suas minorias e populações colonizadas".

Uma praça de Marseille é tomada pela fumaça em meio a manifestações contra a morte do adolescente Nahel, 17 anos, baleado em uma blitz de trânsito.
Uma praça de Marseille é tomada pela fumaça em meio a uma manifestaçãoFoto: Naseer Turkmani/AA/picture alliance

Passado colonial assombra

A França foi uma das maiores potências coloniais da Europa. Do século 16 até a década de 70, seus líderes, como muitos outros no continente, acreditavam que sua "missão civilizatória" justificava a exploração forçada de países e territórios em todo o mundo.

Embora a Revolução Francesa de 1789 tenha prometido "liberdade, igualdade e fraternidade" a todos os franceses (menos às mulheres, mas isso é outra história) no continente francês, as populações que viviam nas colônias apenas sonhavam com direitos iguais. No cotidiano, suas vidas eram marcadas pela repressão. Homens e mulheres eram forçados a "assimilar" a cultura e o idioma franceses.

O papel da França na Argélia, em particular, continua sendo um tópico extremamente sensível. O país do norte da África foi colonizado pela primeira vez em 1830 e depois integrado ao território francês. Quando a Argélia reivindicou sua independência, eclodiu uma guerra brutal que custou centenas de milhares de vidas, principalmente do lado argelino, e que acabou levando ao fim do domínio francês em 1962.

Na mesma época, a França também foi forçada a abandonar o controle de suas outras colônias, principalmente devido ao sucesso dos movimentos de independência. No entanto, alguns territórios ultramarinos permanecem até o presente, com o país mantendo influência econômica, política e militar em antigas colônias, principalmente no continente africano – a exemplo do apoio a líderes autoritários em defesa de seus interesses.

Macron, mais do que qualquer outro chefe de Estado antes dele, reconheceu o passado colonial da França como um "crime histórico". Ele prometeu devolver artefatos roubados e criar comissões para investigar o papel francês na Argélia e durante o genocídio em Ruanda.

Mas críticos, como Crystal Fleming, afirmam que isso não é suficiente. Muitos dizem que a França deveria assumir todas as suas responsabilidades passadas, como quando se trata de reconhecer os crimes cometidos durante seu domínio colonial.

Macron, neste caso, declarou que não pretende "pedir perdão" pelo papel de seu país na Argélia, "pois isso romperia todos os laços [entre ambas as nações]".

Um jovem negro vestindo capuz e máscara cirúrgica conversa com policiais franceses em frente ao Arco do Triunfo, em Paris, durante protestos após a morte do adolescente Nahel, de 17 anos, baleado em uma blitz de trânsito.
Para especialistas, racismo sistêmico na polícia e no governo francês permaneceFoto: Christophe Ena/AP/picture alliance

"Governo segue se autodeclarando não racista"

Partes da sociedade francesa e dos livros escolares ainda argumentam que o colonialismo teve seus aspectos positivos. Em 2017, a política de extrema direita Marine Le Pen disse que a colonização francesa "deu muito" às ex-colônias. O fato de Le Pen ter chegado ao segundo turno das eleições de 2017 e de 2022 e ter a chance de se tornar a próxima presidente da França mostra o quanto esse conceito ainda é difundido.

Ao mesmo tempo, "o governo francês continua se autodeclarando como não racista", diz Fleming. A verdade é que a França há muito tempo se apresenta como "daltônica", por não fazer recenseamento ou mesmo coletar outros dados em relação às questões raciais de seus cidadãos.

Mas não é isso o que vivenciam muitas pessoas de origem migrante, como as que estão protestando agora.

"Há um problema de racismo sistêmico na polícia francesa", disse Rokhaya Diallo, autor e um dos mais conhecidos ativistas de igualdade racial da França. O governo francês nega repetidamente essa acusação.

De acordo com um estudo realizado pela ouvidoria de direitos humanos do país, homens jovens que são vistos como negros ou árabes têm 20 vezes mais chances de serem parados pela polícia francesa. E muitos desses jovens têm suas raízes nas antigas colônias francesas e vivem nas chamadas banlieues, os subúrbios de grandes cidades como Paris, Marselha ou Lyon.

Situação de privação

Os banlieues, como escreveu Johny Pitts em seu livro Afropean - Notes from Black Europe (Afropean - Notas da Europa Negra, em português), foram, na verdade, um efeito colateral da criação da Paris que tantos amam e prezam hoje em dia.

Em meados do século 19, financiado principalmente pelas riquezas coloniais da África, Napoleão 3º incumbiu o planejador urbano Georges-Eugene Haussmann de criar uma nova Paris com ruas mais largas e um melhor sistema de esgoto.

Os mais pobres foram empurrados para a periferia, onde, após a Segunda Guerra Mundial, foram construídos prédios altos devido ao crescimento econômico que estimulou a migração.

Historicamente, os banlieues têm sido negligenciados pelo governo francês. Em 2005, o ex-presidente e então ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, sugeriu limpar os subúrbios com um lava-jato.

Desde então, programas foram criados, debates foram realizados, mas pouca coisa mudou.

Um morador de Nanterre, onde Nahel foi morto, disse à correspondente da DW em Paris, Sonia Phalnikar, que o governo francês criou "essa situação de privação", acrescentando: "Conheço a pobreza e a miséria. E parece que não podemos nos livrar disso".