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HistóriaBrasil

"Ich kann schon brosiliónisch": infância entre dois mundos

28 de abril de 2004

Descendente de alemães nascida no interior do Rio Grande do Sul, a redatora da DW Brasil Roselaine Wandscheer narra vivências e peculiaridades do dialeto alemão falado no Sul do Brasil.

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Igreja da Comunidade Evangélica de Batinga
Igreja da Comunidade Evangélica de Batinga, no interior do Rio Grande do Sul, nos primórdios da imigração alemãFoto: Wandscheer

O ano de 1969 foi um grande marco na minha vida. Não porque o primeiro ser humano pisou na Lua, mas porque comecei a frequentar a escola. Isso para os filhos de "colonos", como ainda hoje se chamam os descendentes de imigrantes alemães no Sul do Brasil, significava aprender a falar português. Finalmente havia chegado a oportunidade de me igualar com minha amiga de infância, Marilene, filha do dono da "venda", que havia aprendido o idioma com os irmãos mais velhos e pelo contato com os brosilióner (Brasilianer, brasileiros), que frequentavam o armazém.

Nasci em Batinga, um lugarejo de 120 famílias, quase todas de ascendência alemã. Os 19 quilômetros da estrada até a sede do município de Brochier ainda hoje são de chão batido, como quase todo o interior do Rio Grande do Sul. Nosso contato com o resto do mundo se dava através do rádio e do leiteiro, que ao passar todos os dias para recolher o leite trazia o jornal (do dia anterior) e encomendas especiais. Meu avô, o único assinante naquelas bandas, não se importava com o atraso. Lá, o mundo de qualquer forma girava muito mais devagar.

Muito não se precisava de fora, pois havia por exemplo ferraria, moinho, carpintaria e serraria no local, além disso todos eram mestres em autossuficiência e improvisação no reaproveitamento de materiais. Já dentista e barbeiro atendiam com certa regularidade no salão de baile.

Aus der Schuul komme

Como só havia um professor, as quatro classes da escola primária tinham aula juntas na única sala do prédio, onde também funcionava a cozinha (nunca entendi por que naquele interior tão farto em alimentos recebíamos merenda escolar do governo, em forma de sopa e leite de soja). Embora o professor dominasse ambos os idiomas, éramos obrigados a falar português em aula.

Meus avós pertenceram à última geração alfabetizada em alemão. Naquela época, escola e religião corriam paralelas. Tanto, que se dizia Aus der Schuul komme (Aus der Schule kommen, terminar o primário) quando se fazia a comunhão, ou confirmação, para os luteranos. Era um marco importante na vida, pois se deixava de ser criança e se adquiria permissão para frequentar o mundo dos adultos, ir a bailes e ter namorado (Schätzen haben).

Minha mãe já havia sido alfabetizada em português, mas estudou a catequese em alemão. Até os anos 70, os pastores da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil vinham todos da Alemanha, sendo os cultos, portanto, em alemão. Hoje em dia, muitas comunidades ainda oferecem serviço em alemão em ocasiões especiais.

Assimilações entre alemão e português

Há enormes variações entre os dialetos falados nas regiões de imigração alemã no Brasil, dependendo do local de onde vieram os colonizadores. Enquanto dentro do Rio Grande do Sul há locais em que se diz Sonnabend para sábado, como no norte da Alemanha, em outras só se conhece a palavra Samstag.

Ao mesmo tempo, a falta de contato com a língua-mãe e sua evolução fez com que algumas palavras simplesmente fossem esquecidas, como reicht, trocada por es chegt (chega, é suficiente!). Em vez de Bonbon (bala em alemão), fala-se pale, o que está mais próximo do português.

Também foram criadas palavras aportuguesadas para designar "invenções modernas" como o caminhão, que os colonos vieram a conhecer no Brasil (kamion, em vez de Lastwagen). Outras, que os alemães não conheciam ao chegar ao país, foram incorporadas ao dialeto. Servem de exemplo as palavras milhe (milho) e potreer, de potreiro (local cercado onde os animais pastam durante o dia).

Onde nasci, não se conhece a propagada expressão Mariechen, mach die janela zu, es chuvt. Em Batinga, diriam Marieche, mach der lóde (Laden) zu, das rehnt (regnet), para "Mariazinha, feche a janela, está chovendo".

Minha avó, por exemplo, entendia muito pouco em português. Certo dia, vieram "da cidade" à procura de meu avô e perguntaram: "Onde está ele?" A coitada atrapalhou-se toda, pois chamava-se Elli — que se pronuncia como "ele" — e fez mil gestos para mostrar que ela estava ali mesmo.

Móie gehen un Tee trinken

Ao contrário das cidades tipicamente alemãs, que geralmente dispunham de sociedades de canto, de atiradores ou de ginástica, as zonas rurais ofereciam aos colonos bem menos oportunidades de esquecer a dura vida no campo. Podia-se Uf die Mussik oder ufs Fescht gehen (Ir à música, ou melhor, baile, ou à festa). Havia o Naijoarspól (Baile de Ano Novo) e o Vereinspól (Baile da Sociedade de Cantores), além do Kerb, a festa da igreja, que vem do alemão Kirmes, quermesse. Nos finais de semana, os homens distraíam-se jogando cartas ou bolão, enquanto as mulheres iam tomar chimarrão nas vizinhas (Móie gehen un Tee trinken).

A festa de aniversário da igreja começava após o culto no domingo e ia até terça-feira. Havia bailes todas as noites, transmitidos ao vivo pelo rádio, e comida que não acabava mais para atender a todos os parentes.

Começava com o almoço. Após a sopa, era servido o assado, geralmente de porco, com arroz e massa caseira, salada de batata à moda alemã (com molho cozido) e outras saladas em conserva, feitas com muita antecedência. Para beber, cerveja, é claro. Mulheres e crianças tomavam suco de limão e sangeri, vinho com água e açúcar, talvez um legado italiano na colônia alemã. De sobremesa, das síss (o doce) não podia faltar sagu com creme e diversas compotas de frutas. Primeiro eram servidos os homens, depois as mulheres e, por fim, as crianças.

Após uma pequena pausa, já era servido o café da tarde, com gefilte bolo (bolo recheado, torta). Diz-se também Torte, mas a palavra Kuchen (bolo em alemão) é usada apenas para um tipo de especialidade: a cuca, hoje inclusive motivo de festa típica no interior do Rio Grande do Sul. O pão de festa era o pão sovado, servido com sagu ou nata. No dia-a-dia, comia-se pão de milho. Muitas especialidades do Kerb hoje são encontradas nos cafés coloniais no Sul do Brasil.

Enquanto as festas religiosas, como o Natal, eram comemoradas com toda a comunidade no salão de baile, os vizinhos e familiares faziam juntos o pixurum da colheita (pixurum é o termo em tupi para mutirão), carneavam uma rês ou um porco, e se ajudavam nos dias de fazer schmia (o termo vem do alemão schmieren, barrar).

Entre os descendentes de alemães no Sul, é a geleia de passar no pão. Ela pode ser feita à base de açúcar e frutas ou então à moda antiga, em enormes tachos a céu aberto, à base de caldo de cana e abóbora. Para variar, ou na falta de outra coisa para passar no pão, fazia-se eierschmier (um creme de ovos com farinha, leite, açúcar e banha).

Uma infância entre dois mundos

Entre os passatempos prediletos das crianças estava andar de schiesskarret, o carrinho de lomba (com rolimã). Nos campos íngremes, um esporte perigoso que podia levar a feridas feias. Para estes casos, ou os ainda mais graves, a mãe ou avó sempre tinham Mainzetrope (Mainzer Tropfen) ou ainda Springesalb (pomada Springer), sem falar nos emplastros e outros medicamentos caseiros.

O que eu sempre achei engraçado é que chamavam as pessoas pelo sobrenome seguido do nome, como Müllererwin, para Ervino Müller. Brinquedos havia poucos, pois só se ganhava presentes na Páscoa, no Natal e no aniversário. Aliás, ver a decoração do pinheiro de Natal era obrigatório. Embora não seja feriado no Brasil, ainda hoje não se trabalha em muitas localidades no interior, no segundo dia de Natal e de Páscoa, tal como na Alemanha.

É quando os afilhados vão à casa dos padrinhos buscar o päckchen (pacotinho), recheado de guloseimas, chocolates e toss no Natal (não se conhece a palavra Plätzchen, bolacha) ou de ovos ocos de galinha, coloridos e recheados com amendoim doce, na Páscoa.

Texto originalmente publicado em 2004