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Freud no tubo de ensaio

Simone de Mello8 de outubro de 2005

Publicação francesa tenta matar o pai da psicanálise. Nos países de língua alemã, Freud ainda é intocável. Até que ponto a psicanálise é científica? Esta questão ocupa opositores e defensores da prática psicanalítica.

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O famoso divã de Freud: apenas peça de museu?Foto: AP

Sigmund Freud não passava de um charlatão interessado em dinheiro, suas pretensas descobertas eram mero engodo. Os psicanalistas conseguiram conquistar posições de destaque nas universidades, na mídia e no cenário cultural.

Se no início a psicanálise teve que lutar contra a ortodoxia da psiquiatria para se consolidar, hoje são os próprios psicanalistas que assumem o papel de guardiões de um dogma ultrapassado.

Em se tratando, por exemplo, de autismo, homossexualismo e dependência de drogas, a psicanálise só causou danos com suas posições alienadas, para não falar de sua culpa pelo destino de "milhares de pessoas".

Freud na lista negra

Cover des Buches Livre Noir de la Psychanalyse
Le Livre Noir de la Psychanalyse(Paris, 2005)

Com acusações deste teor, um livro tenta matar o pai da psicanálise na França. O recém-lançado Livre Noir de la Psychanalyse (Paris: Ed. Les Arènes 2005), que vendeu 23 mil exemplares em pouquíssimo tempo, reúne em mais de 800 páginas artigos de 33 autores europeus e norte-americanos críticos à psicanálise.

Por trás da diversidade das armas, ocultam-se combatentes de uma única ala: os defensores das terapias cognitivas e behavioristas.

As críticas ao livro negro não são menos contundentes do que as disparadas contra Freud. A coletânea foi descreditada pela imprensa francesa e por psicanalistas por causa do tom agressivo, por erros factuais e por falta de argumentos convincentes e de aspectos novos.

De fato, muitos dos artigos incluídos neste compêndio já haviam sido publicados anteriormente ou apenas resumem estudos realizados nos Estados Unidos.

Cura medida à régua

Nas duas frentes da chamada "guerre des psys", quem combate são os adeptos de Freud e Lacan, por um lado, e os representantes das terapias importadas dos EUA. O livro negro representa o maior debate ocorrido na França sobre a questão desde 2003, quando o parlamentar Bernard Accoyer propôs que o uso ainda livre do título de psicoterapeuta fosse regulamentado.

Os psicanalistas reagiram com indignação à tentativa de o Estado submeter o ofício deles ao parecer de terceiros, alegando que o grau de eficiência da psicanálise não se deixa quantificar.

Com este argumento, eles conseguiram – por exemplo – obrigar o Institut National de la Santé e de la Recherche Médicale a retirar de seu site, em fevereiro deste ano, um polêmico estudo sobre as vantagens das terapias behavioristas e cognitivas em relação à psicanálise.

Jacques Marie Lacan
Jacques Marie Lacan (1901-1981)Foto: dpa - Bildarchiv

"Não se pode colocar a questão da eficiência da psicanálise da mesma maneira como se avalia um remédio num protocolo científico", declarou o psicanalista Fréderic Bieth ao jornal Libération, em protesto contra as acusações contidas no livro negro.

Na França, dada a forte herança de Jacques Lacan e de seu diálogo com a filosofia, a psicanálise tenta se defender do empirismo, rejeitando argumentos de cientificidade no debate.

Autocrítica de ortodoxia

Dois congressos sobre psicanálise realizados no ano passado nos Estados Unidos – Working at the Frontiers, organizado pela Associação Internacional de Psicanálise (IPA), em Nova Orleans, e Psychoanalyse at the Edge, por uma outra agremiação estadunidense de psicanalistas e psicoterapeutas, em Miami – demonstraram, no entanto, que a busca de maior cientificidade já começou a fazer parte da autocrítica dos herdeiros de Freud.

Os interessados em renovar a prática psicanalítica acusam a ortodoxia vigente, lamentando que a leitura de Freud como bíblia substitua o intercâmbio intelectual.

Longe de desenvolver critérios científicos, segundo os quais seja possível provar a validade de uma determinada teoria, a adequação de um novo conceito ou a eficiência de uma intervenção terapêutica, a discussão é levada em lealdade a determinados grupos, como se fosse uma guerra religiosa. Estas foram as principais autocríticas vindas do outro lado do Atlântico.

Leia a seguir como os países de língua alemã reagem às críticas contra Freud >>>

"Freudocentrismo" persiste na Alemanha

O que se observa nos países de língua alemã (com exceção da Áustria, país de origem do pai da psicanálise, onde a aquisição dos boletins de escola de Freud pelo Arquivo Estatal ainda rende notícia em todos os jornais) é uma tendência de tomar as armas dos opositores e fazer uso delas para defender a psicanálise.

Se os behavioristas, por um lado, lançam mão de argumentos empíricos contra a psicanálise, os defensores desta resolveram apelar para a "ciência", a fim de salvar a honra de Freud.

No congresso da IPA em Nova Orleans, no ano passado, a diretora do Instituto Sigmund Freud em Frankfurt, Marianne Leuzinger-Bohleber, representou a Associação Psicanalítica Alemã, apresentando um estudo representativo sobre os efeitos de longo prazo do tratamento psicanalítico.

A trilogia Poder e Dinâmica do Inconsciente (Macht und Dynamik des Unbewussten, Frankfurt: Psychosozial-Verlag 2005), recém-lançada na Alemanha, reúne estudos que abordam a questão do inconsciente de um ponto de vista não apenas fenomenológico e cultural, mas também neurológico e físico.

Abordada por todas estas perspectivas, a doutrina freudiana se mantém ilesa, no entanto, o que fez com que a publicação fosse criticada por "freudocentrismo" e falta de autocrítica.

Biologia do inconsciente

Na Suíça, os pesquisadores François Ansermet e Pierre Magistretti, apaziguaram a guerra entre psicanálise e neurobiologia, comprovando com argumentos empíricos que Freud tinha razão. Ambos os estudiosos delinearam uma espécie de biologia do inconsciente.

Em entrevista ao diário Neue Zürcher Zeitung, Ansermet explica que hoje "é possível provar certas teses de Freud com auxílio da neurobiologia": "A psicanálise oferece modelos para possíveis campos de pesquisa, por exemplo, a idéia de que o nosso cérebro pode ser alterado não só por influências externas, mas também por efeitos do universo psíquico. Isso significa que a pessoa gera os mais diversos tipos de impulsos e os acaba percebendo como tais".

Magistretti confirma que toda percepção deixa marcas no cérebro. "Esta marca pode se ligar a outras, de modo que o acontecimento originalmente apreendido e inscrito no nosso cérebro se altera, se deforma e abandona o âmbito consciente, para formar parte de um mundo interior não consciente e dissociado do exterior, ou seja, o inconsciente de Freud."

Mapa do esquecimento

Essas pesquisas realizadas na Suíça confirmam um estudo do psicólogo norte-americano Michael C. Anderson (Universidade de Oregon), publicado no ano passado na revista Science. A publicação reacendeu o debate sobre a questão do recalque.

Em cooperação com pesquisadores da Universidade de Stanford, Anderson conseguiu identificar pela primeira vez uma rede neuronal que viabiliza o recalque de lembranças indesejadas.

Esta argumentação cientificista não prova nada sobre a eficiência da prática psicanalítica, mas mostra que – diante da onda iconoclástica dos últimos anos – a reabilitação de Freud pode ocorrer com mais rapidez nos laboratórios do que nos divãs.