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"Chineses priorizam negócios na relação com Brasil"

1 de outubro de 2019

Em entrevista à DW Brasil, ex-embaixador do Brasil em Pequim relata interesse de empresas chinesas em obras de infraestrutura a serem licitadas pelo governo Bolsonaro – após desconfiança inicial para com novo presidente.

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Presidente chinês, Xi Jinping, observa parada militar em Pequim
Presidente Xi Jinping: de olho nas oportunidades no BrasilFoto: Reuters/J. Lee

A República Popular da China comemorou nesta terça-feira (01/10) o 70º aniversário de sua fundação, com uma grande parada militar, na qual o presidente Xi Jinping reafirmou a disposição e capacidade do país mais populoso do mundo, com 1,4 bilhão de moradores, de seguir avançando. Desde 1991, o Produto Interno Bruto (PIB) chinês cresce mais de 5% por ano.

Um dos países beneficiados por esse crescimento foi o Brasil, do qual a China se tornou o maior parceiro comercial a partir de 2009. Em 2018, o país exportou 64,2 bilhões de dólares para a China e importou 28,8 bilhões de dólares, resultando num superávit de 35,4 bilhões de dólares.

Além de importante para a balança comercial, a China é um potencial investidor em obras de infraestrutura que a gestão Jair Bolsonaro vê como cruciais para destravar o crescimento do país.

Em entrevista à DW Brasil, o diplomata Marcos Caramuru, embaixador do Brasil em Pequim na gestão Michel Temer e conselheiro internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), afirma que, após um período de desconfiança em relação a Bolsonaro, o pragmatismo chinês se impôs, ao ver oportunidades num governo ávido para licitar projetos e privatizar estatais.

O grau de sintonia entre os países terá duas oportunidades próximas para ser testado: em outubro, Bolsonaro viaja à China e se encontra com Xi, que no mês seguinte virá ao Brasil para uma reunião de cúpula do assim chamado Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Caramuru, autor de relatório sobre o estado atual da relação entre Brasil e China, afirma que o país asiático caminha para dominar tecnologias que serão determinantes nas próximas décadas, e que seria "inútil" países de tradição democrática e liberal tentarem contê-lo ou esperar que adote os valores ocidentais. Para ele, o caminho será encontrar "pontos de equilíbrio", para que as nações aproveitem o tamanho do mercado chinês e sua disponibilidade para investimentos no exterior.

DW: A República Popular da China comemorou 70 anos de sua fundação nesta terça-feira. Como define o atual momento do país?

Caramuru: “Há áreas em que China vai avançar com mais rapidez que Ocidente, como na tecnologia digital”
Caramuru: “Há áreas em que China vai avançar com mais rapidez que Ocidente, como na tecnologia digital”Foto: Gabriella Cavalcanti

Marcos Caramuru: A ascensão internacional da China tem em torno de dez anos, começou a partir de 2008. É uma China que vai mostrando ao mundo suas propostas e valores, e desponta não só como uma potência industrial, com imensa capacidade de negociação e de fazer comércio, mas também como um país que começa a deter tecnologias que serão importantes no futuro.

Bolsonaro fez declarações críticas à China durante a campanha, reclamou que os chineses estavam "comprando o Brasil" e visitou Taiwan. Depois, houve gestos de reaproximação, e o vice, Hamilton Mourão, foi à China em maio. Como avalia esses episódios, e qual é o estado atual da relação diplomática entre os dois países?

Esses episódios causaram alguma preocupação nos chineses, mas a ida do Mourão e depois o acerto de uma viagem do presidente Bolsonaro à China em outubro e da viagem do presidente Xi Jinping em novembro ao Brasil para a cúpula do Brics mudou a realidade. Os chineses encaram essa relação de maneira muito pragmática, em favor dos negócios e dos investimentos.

Como o governo e as empresas da China veem hoje o Brasil?

O governo nos vê sobretudo como um parceiro comercial importante que exporta bens essenciais, com o qual a China deve ter boas relações. Hoje vendemos aproximadamente 70% de tudo o que a China importa de soja, produto essencial para produzir ração animal; em torno de 20% do minério de ferro; e 11% de todo o petróleo que a China importa.

As empresas viram no Brasil oportunidades nas áreas de mineração, agricultura e infraestrutura. Algumas foram bem sucedidas, como na área de energia ou de petróleo, que hoje estão extraindo e exportando para a China. Outras não foram bem sucedidas num primeiro momento, mas depois passaram a ser, como a Huawei. Outras, como a Baidu, foram ao Brasil, não encontraram o que buscavam e acabaram saindo. As empresas que operam no ramo de infraestrutura, não só energia, mas ferrovias, rodovias, construção civil, veem grandes oportunidades no Brasil neste momento, porque o programa de infraestrutura ainda tem muito a apresentar.

As maiores empreiteiras brasileiras foram atingidas pela Operação Lava Jato e reduziram seus quadros. O senhor vê um cenário de empreiteiras chinesas ocuparem o espaço da construção civil de infraestrutura que era atendido pelas empreiteiras brasileiras?

As empreiteiras de nível médio no Brasil que estão crescendo poderão participar de várias licitações, sobretudo de nível estadual e municipal. Tem muita coisa para abrir na área de água, saneamento e mesmo rodovias. As empresas chinesas vão se interessar pelos grandes projetos e também pelos de pequena dimensão. Nos projetos de grande dimensão, terão maior competitividade. Nos projetos mais locais, a competição das empresas brasileiras será razoável.

A China não se juntou ao coro de críticas internacionais ao governo brasileiro pelos incêndios e desmatamento ilegal na Amazônia. O que isso significa?

Esse silêncio reflete uma atitude geral da China sobre temas de natureza interna dos demais países. A China tem compromisso com o acordo do clima e tem buscado melhorar as condições do meio ambiente – apesar de que dependerá por muito tempo de combustível fóssil. Mas não é comum ver a China se pronunciando sobre temas de uma outra realidade, nem sobre o Brasil, nem sobre outro país.

O que esperar da visita de Bolsonaro à China, em outubro, e da viagem de Xi Jinping ao Brasil, em novembro?

Primeiro, iniciar um diálogo entre as duas autoridades de nível mais elevado dos dois países. Isso é importante, pois quem está no mundo dos negócios espera que as autoridades estejam se entendendo. Segundo, há uma expectativa brasileira de que a China continue participando de processos de privatização e investimentos em infraestrutura no Brasil – isso será um tema na agenda. A terceira coisa é a confirmação dos interesses comerciais neste momento, estamos aumentando as exportações de soja e o número de empresas capacitadas a exportar proteína. E, finalmente, um ajuste mais claro sobre a posição conjunta dos dois países em relação a grandes temas da agenda internacional e sobre o potencial de integração no contexto do Brics.

Os investimentos da China no Brasil caíram 66% de 2017 e 2018. Qual é a perspectiva para este ano?

Tudo vai depender dos projetos de privatização. Se as licitações saírem, os investimentos voltam a aumentar rapidamente. No mais, nesse período não houve só uma queda nos investimentos da China no Brasil, mas no mundo todo. Os chineses foram com muito apetite nos primeiros anos da sua inserção internacional, foi como uma parada de arrumação.

Os EUA e China estão numa disputa comercial, diplomática e tecnológica. Quais os riscos e oportunidades que esse choque oferece ao Brasil?

Como oportunidade, as exportações de soja aumentaram consideravelmente, e o número de plantas autorizadas a exportar proteína aumentou. O risco é que essa disputa cria confusão nos mercados internacionais, diminui a segurança nos investimentos externos de todos os países, no comportamento das bolsas de valores e no desenho das cadeias de valor internacionais. Essa instabilidade não interessa a ninguém, e tampouco ao Brasil, que é sensível aos desequilíbrios na economia internacional. Não acho que essa disputa vá ser resolver: nós e o resto do mundo continuaremos tendo que sofrer as consequências dessa controvérsia.

A China é uma república socialista de partido único, com baixo nível de liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, é uma potência econômica com a qual países de tradição liberal-democrática se relacionam em busca de oportunidades de comércio e investimento. Como o senhor avalia esse conflito?

Os países do Ocidente não devem esperar que a China abrace seus valores em relação aos temas políticos e econômicos. É preciso aceitar que a realidade chinesa é construída com base em princípios e ideias diferentes daquelas que prevalecem no Ocidente. Essa aceitação tem um aspecto econômico relevante, porque permite a todos os países terem uma relação profícua com a China e aproveitar o tamanho do seu mercado e sua disponibilidade para investimentos no exterior.

A China vai cada vez mais trazer ao mundo novas propostas e os seus próprios valores, mas não no sentido de transformar o mundo ocidental capitalista e democrático. E há áreas em que a China, pelas suas características, vai avançar com mais rapidez do que o Ocidente, como na tecnologia digital, porque permite que as empresas verticalizem suas atividades, e não existe a discussão sobre privacidade como no Ocidente.

É inútil o Ocidente tentar conter a China, assim como seria um equívoco do Ocidente abandonar seus valores e acelerar processos que não devem ser acelerados, sem que seus valores sejam levados em conta, apenas porque existe a competição chinesa. Vai ser necessário conviver com isso e encontrar os pontos de equilíbrio corretos entre Ocidente e Oriente.

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