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Cacofonia alemã

13 de maio de 2020

Protestos contra as medidas de combate ao coronavírus mostram um lado obscuro da sociedade alemã. É uma lição dura e que se repete: assim como no Brasil, a cada crise, surgem pessoas que parecem viver em outro mundo.

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"Sem política do medo": cerca de 3 mil pessoas protestaram em Munique contra medas de isolamento social, em 9 de maio
"Sem política do medo": cerca de 3 mil pessoas protestaram em Munique contra medas de isolamento social, em 9 de maioFoto: picture alliance/dpa/P. Kneffel

Caros brasileiros,

Ela sempre aparece, mas será que ela serve para alguma coisa? Estou falando da comparação entre Brasil e Alemanha, muitas vezes infeliz e injusta. Nesta semana, nessa comparação, foi a Alemanha que se deu mal.

Nos dois últimos fins de semanas, em várias cidades alemães, houve manifestações contra uma suposta "ditadura" do coronavírus. Para os manifestantes, as restrições de liberdade por causa do combate à epidemia são mais graves que o perigo da doença em si.

Confesso que esses protestos me deixaram atônita. Não era o governo brasileiro que tinha adotado uma postura tão radical e perigosa? A Alemanha não era considerada um dos países-modelo no combate à covid-19? De onde vêm essas pessoas que são contra a vacinação, a prevenção, contra a ciência e os fatos e que parecem serem seguidoras do presidente Bolsonaro aqui na Alemanha?

De repente, fui forçada a olhar para um lado obscuro e feio da sociedade alemã, que sempre existia e continua existindo. Nesse lado, extremistas se dão o luxo de mergulhar num universo paralelo e seguir teorias da conspiração, enquanto usufruem de um sistema social de um Estado que eles mesmo rejeitam.

É dura a lição que se repete: a cada crise, surgem pessoas que parecem viver em outro mundo, pregando o apocalipse. E aparecem políticos pegando carona nessa onda. Não faltam crises para conspirar: é a "crise" da globalização, do capitalismo, do comunismo, do euro, dos refugiados, e por aí vai.

Como escreveu o cientista político Oliver Stuenkel em artigo no site em português do jornal El País, "o maior medo de qualquer líder autoritário é ficar sem ameaça ou inimigo. A tarefa básica para poder se projetar como o salvador da pátria é justificar medidas excepcionais para supostamente defender o país."

Quem dominava esse método era Hitler. Para subir ao poder, ele inventou uma "conspiração judaica mundial" e prometeu aos nacionalistas e conservadores da primeira democracia alemã, a República de Weimar (1919-1933), "combater o comunismo".

A crise econômica nos anos 1930, com milhões de desempregados, beneficiou o partido dele: nas eleições parlamentares de 1930, a legenda nacional-socialista conseguiu 18% dos votos, muito mais do que os 2,6% do pleito anterior, de 1928. Em julho de 1932, os nazistas se tornaram o partido mais votado no Parlamento, com 37% dos votos.

Hitler chegou democraticamente ao poder e causou o maior desastre da Humanidade: a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, com mais de 60 milhões de mortos. Como se isso não bastasse, depois da guerra, nazistas procurados por crimes contra a Humanidade conseguiram fugir e passaram anos vivendo tranquilamente no exílio, muitos deles na América Latina, inclusive no Brasil.

Passados 75 anos da Segunda Guerra Mundial, estamos assistindo à banalização do nazismo aqui na Alemanha. O presidente honorário do partido populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD), Alexander Gauland, por exemplo, declarou em 2018: "Hitler e os nazistas são só um cocô de passarinho em mais de mil anos de bem-sucedida história alemã."

Parece que o governo do presidente Bolsonaro gosta de imitar esses métodos nazistas. Primeiro foi o ex-secretário da Cultura Roberto Alvim, agora a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. O vídeo publicado pela Secom utilizou a mensagem "O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil". Lema semelhante está inscrito na entrada de Auschwitz.

Bolsonaro chegou democraticamente ao poder, assim como Hitler. E, assim como Hitler, ele continua incitando os seus seguidores a desmerecer instituições democráticas, insinuando que elas não seriam capazes de solucionar crises como a atual do coronavírus.

A verdade é que essas instituições democráticas até agora conseguiram evitar o pior.  E é verdade também que Bolsonaro não tem solução para superar a crise do coronavírus, assim como Hitler também não tinha uma solução para acabar com o desemprego. Os empregos criados pelo regime nazista foram principalmente na indústria de armamento e na construção de autoestradas. O objetivo era a preparação para a guerra.

As forças políticas de oposição a Hitler não conseguiram frear a instalação da ditadura nazista na Alemanha. Torço para que esse cenário não se repita no Brasil. Que o Brasil e suas instituições democráticas resistam à tentação autoritária e sejam mais sólidas que a democracia alemã da República de Weimar.

A Alemanha deveria endurecer o combate aos neonazistas, negadores do Holocausto e manifestantes contra a "ditadura" do coronavírus, em vez de apontar o dedo para o Brasil. Pois, seguidores de Bolsonaro, esses há no mundo inteiro, assim como nazistas. 

Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.

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