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"Brasil não deveria ter lado na disputa entre China e EUA"

15 de novembro de 2020

Ex-embaixador brasileiro em Washington diz que, no conflito entre superpotências, não há razão para optar por um ou outro. Ideal é preservar autonomia para decidir caso a caso, de acordo com os interesses nacionais.

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China | Präsident Xi Jinping und Joe Biden
Joe Biden, hoje presidente eleito, e o líder chinês Xi Jiping em 2011Foto: Ng Han Guan/dpa/picture alliance

A eleição de Joe Biden para presidente dos Estados Unidos deveria ser usada pelo Brasil como uma oportunidade para repensar a relação do país com a China e reorientar a política externa do Itamaraty, no sentido de uma abordagem pragmática com ambas as potências.

A análise é de Sérgio Amaral, que foi embaixador do Brasil em Washington de setembro de 2016 a junho de 2019, nomeado pelo presidente Michel Temer, e hoje é conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), responsável pelo núcleo sobre os Estados Unidos na entidade.

Em entrevista à DW Brasil, ele afirma que o Brasil não ganha nada se alinhando automaticamente aos Estados Unidos e precisa preservar sua autonomia para decidir caso a caso nessa disputa, de acordo com os interesses nacionais.

"Esse é um conflito entre as duas superpotências e não temos razão para estar a favor de um em detrimento do outro. O que queremos, e os dois são parceiros importantes, é manter uma boa parceria com ambos”, afirmou.

Sua posição contrasta com a adotada por Bolsonaro, em cuja gestão Amaral foi embaixador por seis meses. O presidente já fez seguidas ofensas aos chineses, apesar de eles serem o principal parceiro comercial do Brasil. Os ataques mais recentes se referem à vacina contra a covid-19 desenvolvida pela Sinovac, cujos testes são realizados em parceria com o instituto Butantan, de São Paulo.

DW: Como o sr. interpreta a vitória de Biden no contexto americano?

Sérgio Amaral: Biden representa, sobretudo, um movimento anti-Trump. E tinha um Partido Democrata que se uniu em torno dele, porque ele apresentava as melhores condições para derrotar o Trump, sobretudo pela sua posição ao centro, o que se mostrou verdade. Biden podia unir as correntes mais progressistas dos democratas, como o grupo liderado por Bernie Sanders e, ao mesmo tempo, tinha acesso fácil aos democratas mais conservadores.

Trump ainda não admitiu sua derrota e ordenou seu governo a preparar o Orçamento de 2021 como se ele tivesse sido reeleito. Que efeito isso tem para a democracia e as instituições americanas?

Essa postura de Trump, de contestar as eleições, é o que ele já vinha fazendo mesmo antes das eleições, e mostra uma quebra de confiança na democracia. Quando o candidato de um grande partido questiona, mesmo antes de ter qualquer fato, a legitimidade das eleições, está contestando a legitimidade da democracia americana.

Biden encontrará dificuldades para governar, porque o país está dividido, existe quase que uma distribuição geográfica dos eleitores em função de bairros e da [divisão] cidade-campo. Será muito difícil o governo, sobretudo se os Republicanos ganharem a eleição ao Senado na Georgia [a ser decidida no segundo turno em 5 de janeiro de 2021].

A consequência para o futuro é saber o que será do trumpismo, que, à semelhança de outros movimentos nacionalistas e populistas, é em boa medida incompatível com a democracia, por assumir posturas nacionalistas extremadas e questionar as instituições da política. A grande questão que fica é o casamento de conveniência entre o Partido Republicano e o Trump, no qual Trump tem os votos e os republicanos oferecem o partido. Até quando esse casamento vai subsistir?

A recusa de Trump em aceitar o resultado eleitoral levará outros líderes de linha política semelhante a fazer o mesmo, como por exemplo Bolsonaro em 2022?

Ele já questionou algumas vezes a urna eletrônica, mas é difícil saber porque daqui até as eleições há um tempo grande. É preciso saber como o governo vai caminhar, quais são as circunstâncias eleitorais, a relação entre os partidos. Mas, a julgar pelo que ele já disse, é possível que ele conteste as eleições sim.

O programa de governo de Biden afirma que o novo governo americano vai identificar e expor (política conhecida como "name and shame") os países que forem "foras da lei" na questão do clima, e há analistas dizendo que o Brasil será o primeiro a entrar nessa lista. O sr. considera isso provável?

Tive com Biden uma longa reunião quando o presidente Temer esteve nos Estados Unidos e ele era vice-presidente do [Barack] Obama. Ele tem amplo conhecimento de política externa, conhece bem a América Latina e gosta do Brasil. Além disso, temos com os Estados Unidos uma relação positiva, tradicional e forte desde a independência do Brasil. Não acredito que ele deliberadamente vá tomar medidas contra o Brasil.

Por outro lado, Biden tem um forte compromisso com a questão ambiental, será uma das primeiras questões da sua agenda. E neste momento a causa ambiental também tem grande relevância na Europa, basta citar que a Comissão Europeia, ao constituir seu fundo para a recuperação da economia, privilegiou os investimentos nas novas fontes alternativas de energia.

Nos Estados Unidos, haverá uma forte corrente ambientalista que exercerá pressão sobre o Congresso e sobre a opinião pública para que sejam tomadas medidas que reduzam o quanto possível o desflorestamento da floresta amazônica.

Se o governo brasileiro não mostrar preocupação efetiva com o meio ambiente, é mais provável que haja sanções econômicas ou boicotes de empresas e consumidores?

Poderá haver medidas aprovadas pelo Congresso [americano] sim, independente de uma ação do Executivo, como restrição às exportações brasileiras aos Estados Unidos. Agora, o ponto mais importante é que a questão ambiental é, mais do que a demanda de alguns partidos, a utopia do século 21. Da mesma forma que, na minha geração, havia uma utopia social por reformas sociais, agora existe uma utopia ambiental, sobretudo entre os jovens, que rejeitam o consumo de produtos que possam ter tido alguma implicação no desflorestamento. E essas forças atuam sobre as importações, sobre a distribuição e sobre os supermercados. Não precisa nem o governo intervir.

O governo Bolsonaro se esforça para incluir o Brasil na lista de membros efetivos da OCDE, e fez diversas concessões ao governo Trump em troca desse apoio da Casa Branca. A vitória do Biden influencia o futuro desse processo de adesão?

A grande questão era que os Estados Unidos não estavam dispostos a apoiar a candidatura do Brasil para a OCDE. Era o único país que não queria, e os Estados Unidos têm uma força grande na OCDE. Isso bloqueava um consenso de países favoráveis à candidatura brasileira. Mas a candidatura brasileira foi aprovada. Isso significa que se iniciou um longo programa de negociação sobre os protocolos setoriais, com os quais o país que deseja ser aceito como membro pleno precisa concordar e se dispor a cumprir.

Esse processo vai demorar alguns anos, e não há razão para que nenhum país que já apoiou a candidatura do Brasil venha a questionar essa candidatura. O que pode acontecer é que nas negociações surjam dificuldades que não consigam ser superadas. As negociações com a Colômbia levaram seis anos. Mas não acredito que qualquer governo venha a obstar neste ponto em que já se encontra a candidatura do Brasil.

O Brasil demonstrou recentemente interesse em fazer parte da Clean Network, uma aliança de países apoiada pelos Estados Unidos e liderada por Reino Unido e Suécia para que as redes 5G não tenham equipamentos da empresa chinesa Huawei. Como avalia esse movimento do Brasil no final do governo Trump?

O governo Biden possivelmente trará mudanças nas relações com a China. Ele já disse que a postura de Trump foi equivocada, porque as sanções não alcançaram o seu objetivo e apenas aumentarem a tensão em nível mundial. É possível que Biden tenha outra abordagem em relação a esses temas e isso terá um distensionamento nas relações entre a China e o Brasil.

Esse é um conflito entre as duas superpotências e não temos razão para estar a favor de um em detrimento do outro. O que queremos, e os dois são parceiros importantes, é manter uma boa parceria com ambos, e que as nossas decisões reflitam o interesse nacional, e não uma adesão a priori a um dos lados.

Qual é o maior desafio geopolítico atual e quais são as melhores oportunidades para o Brasil nesse cenário?

A grande questão geopolítica da primeira metade do século 21 é a emergência da China e o que isso coloca para a relação com os Estados Unidos. China e Estados Unidos vão plasmar a nova ordem internacional, seja pela cooperação, seja pelo conflito. E é importante que o Brasil busque preservar as suas faixas de autonomia de decisão e, ao mesmo tempo, diversificar as suas alianças, de forma a que não se veja envolvido apenas com uma das duas grandes potências. Essa é a consideração principal para a política externa brasileira.