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As faces do movimento negacionista da covid-19 na Alemanha

Anne Höhn as
7 de agosto de 2020

Protesto que reuniu 20 mil em Berlim mostrou força de um grupo heterogêneo que inclui extremistas de direita, propagadores de teorias conspiratórias, militantes antivacinas e até adeptos do esoterismo.

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Berlin I Proteste gegen Corona-Auflagen I Day of Freedom
Foto: Getty Images/M. Hitij

As imagens que registradas em Berlim no fim de semana passado tinha algo de incomum para esses tempos de pandemia e medidas de distanciamento social. Milhares de manifestantes, lado a lado, sem máscaras no rosto, gritavam palavras de ordem como "nós somos a segunda onda" e "resistência" nas proximidades do Portão de Brandemburgo.

Incomum era também a composição dos manifestantes: um grupo heterogêneo, formado sobretudo por radicais de direita, propagadores de teorias da conspiração, adversários de vacinas, adeptos de tratamentos alternativos e esotéricos.

Sob o dúbio lema "Tag der Freiheit - das Ende der Pandemie" (Dia da liberdade - o fim da pandemia), os manifestantes protestaram contra as medidas do governo alemão para conter a disseminação do novo coronavírus. "Dia da liberdade" pode soar inofensivo, mas é também o título de um filme de propaganda nazista dirigido por Leni Riefenstahl, um ícone do nazismo, sobre a convenção do partido nazista NSDAP em 1935 e focado na Forças Armadas do país.

O primeiro grupo a convocar a manifestação foi o controverso Querdenken 711, de Stuttgart (711 é o prefixo telefônico de Stuttgart). Essa organização, formada sobretudo por militantes antivacinas já convocara protestos semelhantes na capital de Baden-Württemberg, até então os maiores na Alemanha. Desta vez, milhares de pessoas de outros estados seguiram a convocação e foram para Berlim. Segundo a polícia, o protesto reuniu 20 mil pessoas.

Bandeiras com listras horizontais preta, branca e vermelha tremulavam sobre os manifestantes. A antiga bandeira do Império Alemão é hoje um símbolo da extrema direita alemã. Os chamados Reichsbürger (um grupo difuso que não reconhece a existência da República Federal da Alemanha) e grupos de extrema direita usam a bandeira imperial para expressar sua rejeição à democracia alemã e para contornar o banimento público de símbolos nazistas.

Ao lado deles marchavam pessoas que exibiam bandeiras com o símbolo hippie da paz ou a bandeira do arco-íris, originalmente um ícone pacifista normalmente usado pelo movimento LGBT, e cartazes com dizeres como "Jesus vive".

No meio de tudo isso, algumas famílias ou pessoas que apenas não concordam com as medidas contra o coronavírus, sem necessariamente abraçar teorias da conspiração.

Manifestação contra as medidas de distanciamento social em Berlim
Protesto reuniu 20 mil pessoas no centro de BerlimFoto: Getty Images/AFP/J. MacDougall

O que toda essa gente tem comum é a rejeição às medidas governamentais para acabar com a pandemia. Muitas delas também desconfiam profundamente da imprensa e expressam esse sentimento sem qualquer contenção. Uma jornalista da DW que acompanhava o protesto foi várias vezes ofendida, intimidada e, num tom agressivo, ouviu para que retirasse sua máscara.

Alguns cartazes deixavam claro: quem os carregava não acredita que haja uma pandemia e diz que tudo não passa de uma manobra do governo alemão para transformar o país numa ditadura.

Alguns manifestantes traziam a estrela de Davi costurada na roupa, junto da palavra "não vacinado". Com isso, os antivacinas se comparam com os judeus perseguidos pelo nazismo e apresentam a situação atual na Alemanha como uma ditadura e um "fascismo vacinatório".

Berlim: extremistas protestam contra restrições por covid-19

A chanceler federal Angela Merkel, o conhecido virologista Christian Drosten e o ministro alemão da Saúde foram chamados de Erfüllungspolitiker (políticos do conformismo, uma expressão cooptada pela extrema direita para difamar a política externa alemã na República de Weimar, que tinha como estratégia cumprir todas as exigências do Tratado de Versalhes para assim evidenciar justamente a impossibilidade do cumprimento dessas exigências. Os adeptos dessa estratégia eram xingados pela extrema direita de Erfüllungspolitiker).

Também comuns eram cartazes que diziam "sem chances para Gates", em alusão ao slogan da campanha "sem chances para a aids", do governo alemão. Uma teoria da conspiração diz que o fundador da Microsoft, Bill Gates, quer vacinar a força todas as pessoas para assim implantar microchips nelas.

Muitas dessas teorias da conspiração têm suas origens nas redes sociais e são nelas difundidas por pessoas conhecidas da cena de extrema direita na Alemanha. As postagens dessas pessoas desempenham um papel importante para que haja protestos contra as medidas de distanciamento social. Referências às postagens são comuns em cartazes exibidos nessas manifestações.

Manifestação contra medidas de distanciamento social em Berlim
Distanciamento e máscaras foram ignorados pelos participantes do protestoFoto: picture-alliance/dpa/C. Soeder

A primeira das manifestações contra as medidas anticorona foi iniciada há quatro meses pelo jornalista de esquerda Anselm Lenz. Ele afirmou então que o Estado se aliou "às empresas farmacêuticas e de TI para acabar com a democracia".

Quarenta pessoas atenderam ao chamado de Lenz e foram à Praça Rosa Luxemburgo, em Berlim. Um mês depois elas já eram mais de mil, e já então havia cartazes com dizeres contra Bill Gates e referências ao "fascismo vacinatório".

Um dos primeiros a se manifestar contra as medidas anticorona foi o radialista Ken Jebsen. Ele foi demitido em 2011 por causa de declarações antissemitas. Depois disso, criou e difundiu uma mídia alternativa, com um canal no YouTube e um site que atingem 490 mil pessoas. Ele entrevistou Lenz numa das primeiras manifestações.

Jebsen divulga no YouTube que Gates quer se infiltrar na Organização Mundial da Saúde (OMS) para ganhar dinheiro com uma vacina. O vídeo foi bem recebido pelos seus seguidores, amplamente difundido por eles e recebeu, em uma semana, 3 milhões de cliques.

Gates é também o inimigo favorito do chef e autor de livros de receitas veganas Attila Hildmann. Ele se tornou um ativo negacionista do coronavírus já no início da pandemia. Depois de ter sido bloqueado no Instagram por desrespeito às regras de comportamento da rede social, ele se mudou, junto com seus seguidores, para o Telegram. Nesse serviço de mensagens ele é seguido por 68 mil pessoas e chama Gates de satanista, Merkel de marionete da China e do “sionismo” e conclama as pessoas a se defenderem das medidas de distanciamento – se necessário, com armas.

Cartaz contra Bill Gates
Cartazes contra Bill Gates são comuns nas manifestaçõesFoto: picture-alliance/dpa/C. Gateau

Nessa linha segue outro teórico da conspiração, Heiko Schrang. Nos seus vídeos no YouTube, ele se alterna entre denúncias de uma suposta manipulação da sociedade por meio da imprensa "mainstream" e declarações de que a pandemia é uma mentira e a população não deve se deixar mandar por "aqueles lá de cima".

Essa ampla gama de teóricos da conspiração construiu alguns inimigos em comum: o Estado alemão, Bill Gates e a chamada "conspiração sionista". Na visão de mundo alternativa criada por eles, as teorias mais indigeríveis fazem sentido, são ajustadas entre si e se complementam.

Aí veio um duro golpe para eles: a taxa de infecção caiu na Alemanha, e as medidas de distanciamento social foram relaxadas pelos governos federal e estaduais. A população estava, em geral, satisfeita, e a adesão às ideias dos teóricos da conspiração caiu. Mas, agora, as infecções voltaram a aumentar e, com elas, o movimento negacionista ganhou novo impulso.

Quando 20 mil pessoas foram às ruas em Berlim, Jebsen e Hildmann transmitiram ao vivo do local pelos seus canais no YouTube e elogiaram os "lutadores pela liberdade". Assim como outros apoiadores da manifestação, eles difundiram o número totalmente exagerado de 1 milhão de participantes.

Muitas pessoas na manifestação usavam camisetas em alusão a um livro de Schrang, uma espécie de grande estrela do dia. No palco, ele incentivava e animava os participantes. E prometia um futuro melhor: a libertação da ditadura do corona havia finalmente começado. Seu discurso, que está no YouTube, foi visto por 13 mil pessoas apenas nas primeiras horas depois da postagem.

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