"Politicamente, acordo UE-Mercosul está longe de ser selado"
10 de outubro de 2019A dinâmica de negociação e pressão entre países da União Europeia (UE), como Alemanha e França, será determinante para o sucesso ou o fracasso do acordo de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul, anunciado em junho mas que ainda precisa ser ratificado em diversas etapas.
A análise é do embaixador José Alfredo Graça Lima, que chefiou a representação permanente do Brasil junto à UE, em Bruxelas, de 2003 a 2007, período em que participou das conversas sobre o acordo.
Hoje aposentado do Itamaraty e vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Graça Lima aposta que, de zero a dez, a chance de o acordo ser ratificado é de "no máximo sete". "Do ponto de vista técnico, o trabalho foi concluído, mas, do ponto de vista político, está longe de ser", diz ele em entrevista à DW Brasil.
O texto, costurado entre a Comissão Europeia, braço executivo do bloco, e os países-membros do Mercosul, está sendo revisto, e sua versão final deve ser divulgada no início de 2020. Depois, deverá ser analisado pelo Conselho Europeu – que reúne os chefes de Estado ou de governo dos países do bloco e onde se exige unanimidade –, pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais dos países-membros, o que deve ocorrer somente no final de 2020 ou em 2021.
Ao longo desse processo, interesses dos produtores de cada país pressionarão seus governos, que, por sua vez, buscarão negociar entre si algum desfecho. A Alemanha, país de forte base industrial exportadora, é grande interessada no acordo, enquanto a França, onde agricultores protegidos por subsídios têm muita força política, é cética.
"Isso já funcionou no meio do ano, quando autoridades da Alemanha deixaram claro, em cartas, que era importante concluir o acordo com o Mercosul, [...] mas ninguém pode determinar qual será o resultado final dessa dinâmica", diz Graça Lima.
Se o acordo for ratificado, a maior parte das tarifas de importação entre os 28 países da UE e os quatro do Mercosul deverá ser abolida. A isenção atingiria 95% dos produtos exportados pelo Mercosul para a UE e 91% dos bens exportados pela UE ao Mercosul, em uma transição de até 15 anos.
DW: O acordo foi anunciado em junho de forma entusiasmada pela Comissão Europeia e por países do Mercosul, mas em agosto, durante a crise do desmatamento na Amazônia, recebeu um balde de água fria com ameaças de países europeus, como França e Irlanda, de que não iriam ratificá-lo. Qual a temperatura do acordo hoje?
José Alfredo Graça Lima: O acordo foi recebido com entusiasmo por aqueles que estavam trabalhando nele durante muitos anos, foi uma proeza anunciar algo que estava e continua sendo cercado de controvérsias. Porém ainda é um work in progress. Do ponto de vista técnico, o trabalho foi concluído, mas, do ponto de vista político, está longe de ser. A Comissão [Europeia] cumpriu seu mandato, mas não tem poder para aprová-lo, quem tem esse poder são os países do bloco. Só teremos uma ideia clara quando o texto for ao Conselho Europeu, daqui a um ano e meio, para aprovação ou rejeição.
De zero a dez, qual é a chance de o acordo entrar em vigor na opinião do senhor?
No máximo sete e no mínimo três. Por um lado, países como França e Irlanda, que se dispuseram a negociar algum texto, nunca foram favoráveis a um acordo com o Mercosul por causa dos mercados agrícolas e não precisam de nenhum outro pretexto para se opor. A Polônia, que é forte em agricultura, também não vê como interessante a concorrência do Mercosul. Mas, como o acordo é de alto interesse para países como a Alemanha, vai haver pressão interna para sua aprovação – confiando que as cláusulas ambientais sejam respeitadas pelo Brasil.
Como será essa negociação entre os países da União Europeia?
Isso já funcionou no meio do ano, quando autoridades da Alemanha deixaram claro, em cartas, que era importante concluir o acordo com o Mercosul. Da mesma maneira como acontece entre a Comissão e o Conselho, entre os países há uma tensão, mas ninguém pode determinar qual será o resultado final dessa dinâmica.
A expectativa dos países do Mercosul, que continuam interessados no acordo, é que prevaleça na União Europeia a posição favorável ao acordo, como é a da Alemanha e talvez de outros países como Espanha e Portugal. Os países ibéricos são um pouco dúbios por causa da questão agrícola, mas como parte da indústria e dos serviços teriam benefícios num comércio mais desimpedido com o Mercosul, podem acabar votando favoravelmente.
A fragmentação partidária crescente em alguns países da Europa e no Parlamento Europeu afeta o processo de ratificação do acordo?
É mais um complicador nesse processo, que fica mais incerto. E a própria economia global é muito incerta. Os países têm uma necessidade política de dar aos agentes econômicos uma mensagem positiva, e essa mensagem foi primeiramente externada com a conclusão das negociações. À medida que obstáculos vão sendo encontrados, os agentes começam a ficar menos seguros em relação à implementação do acordo.
Quais setores no Brasil perderiam com o acordo?
Não é questão de perder ou de ganhar, mas vai mexer com as indústrias que se beneficiam de tarifas muito altas na importação dos produtos. O mais emblemático deles é o automóvel, que tem um tarifa de 35%. Outros bens industriais de consumo também têm tarifa de 35%, que é extremamente alta. Basta olhar a tarifa externa comum para saber quais setores serão afetados por terem tarifa muito alta.
[Nota da redação: além de automóveis, têm hoje tarifa externa comum de 35% no Mercosul diversas peças de vestuário, como casacos, ternos, camisas e camisetas, tendas e barracas, alguns tipos de calçados, tapetes, bonecas e brinquedos, entre outros.]
O acordo permite que empresas europeias participem de compras públicas no Mercosul e vice-versa. Qual seria o impacto nas compras públicas brasileiras?
No momento que você habilita as empresas a concorrer, você reduz custos e proporciona a seus parceiros condições de concorrência semelhantes àquelas aplicadas às empresas locais. O atual governo [brasileiro] tem um discurso de liberalização, e compras governamentais são um sinal poderoso para demonstrar esse desejo de ter uma economia mais aberta.
A questão ambiental está hoje no centro da política europeia, e o acordo estabelece compromissos de desenvolvimento sustentável dos signatários. Há risco de um país europeu ou a União Europeia como um todo suspenderem a importação de produtos do Brasil se constatarem a violação desses compromissos?
A questão ambiental não está só no centro da agenda europeia, mas sim no centro da agenda global. O Brasil é um país agroambiental, e tem ou deveria ter todo o interesse em conciliar as políticas de preservação do meio ambiente com as políticas de crescimento do agronegócio. Independentemente da retórica e do debate sobre preservação ambiental na Amazônia, o acordo tem essas cláusulas, e se elas forem desrespeitadas haverá eventualmente recurso a restrições.
Como o sr. avalia a postura do atual governo brasileiro em relação a temas ambientais e sua tentativa de reagir após ser alvo de críticas de outros países?
O que vejo é uma discussão a respeito de como preservar o meio ambiente, uma insistência do governo brasileiro em manter a soberania sobre seu território, que se estende por grande parte da Amazônia, e ao mesmo tempo um propósito de manter compromissos acordados.
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