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Academia Brasileira de Letras fica mais pop

4 de novembro de 2021

Tradicional instituição ganha verniz da cultura de massa com eleição da atriz Fernanda Montenegro e provável escolha do músico Gilberto Gil, favorito a ocupar outra cadeira da ABL ainda neste mês.

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A atriz Fernanda Montenegro
Fernanda Montenegro deve ser confirmada nesta quinta e se juntar a um grupo ainda muito pequeno de mulheres na ABLFoto: Amazon Studios/Everett Collection/picture alliance

Entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), Machado de Assis (1839-1908) e Joaquim Nabuco (1849-1910) tinham argumentos diferentes na hora de colocar critérios sobre quem deveriam ser os ocupantes das 40 cadeiras da instituição. 

O primeiro defendia um recorte exclusivamente literário. "[Por outro lado,] Nabuco compreendia que diversas áreas, claro, com qualidade literária [deveriam ter espaço]. A Academia deveria abrir suas portas para todos que se destacassem em áreas específicas desde que tivessem a publicação de [ao menos] um livro e todo um percurso reconhecido no campo intelectual", explica o poeta, escritor, tradutor e professor universitário Marco Lucchesi, atual presidente da ABL. 

Machado perdeu a queda de braço, e o estatuto publicado na fundação da casa, em 28 de janeiro de 1897, – vigente até hoje – exige que os chamados imortais "tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário". 

É por isso que a ABL, ao longo de sua história, reuniu entre seus confrades pessoas que, mesmo autores de um ou mais livros, não são e nem foram necessariamente reconhecidos como escritores. O cirurgião plástico Ivo Pitanguy (1926-2016) ocupou a cadeira 22 e o inventor Santos Dumont (1873-1932) foi eleito para a 38. Também se tornaram acadêmicos os empresários da comunicação Assis Chateaubriand (1892-1968) e Roberto Marinho (1904-2003), e o ex-presidente Getúlio Vargas (1882-1954). No rol de políticos, aliás, fulguram na casa hoje os ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.

Neste mês de novembro, duas figuras de renome cultural no Brasil devem ser eleitas para as cobiçadas vagas da ABL, no estilo defendido por Nabuco: reconhecidos no campo intelectual, não são essencialmente escritores. Nesta quinta-feira (04/11), a atriz Fernanda Montenegro, candidata única, foi confirmada para a cadeira 17. Na semana seguinte, o músico Gilberto Gil é favorito a vencer a eleição para a cadeira 20.

Fama entre os imortais

Nos bastidores da instituição, o período eleitoral é dominado por conversas ao pé do ouvido. Quando há candidaturas tão famosas, esses burburinhos tendem a ser ainda maiores – embora na frente dos holofotes ninguém goste de comentar nada. "É claro que figuras populares têm um poder midiático [para a ABL], isso é inegável. Ao mesmo tempo, não podemos perder o foco: somos escritores em um país que pouco lê", comenta um dos acadêmicos, que pede para não ter seu nome identificado.

Gilberto Gil
Gilberto Gil é favorito a vencer a eleição para uma cadeira na ABLFoto: FAO/Giulio Napolitano

Lucchesi enfatiza que não comenta sobre nomes de candidatos. Mas lembra que a entidade não precisa emprestar prestígio de ninguém. "A Academia tem uma larga tradição. Foi casa de Machado, de Guimarães Rosa, de Manuel Bandeira, de Darcy Ribeiro… Tem um lastro importante e inquestionável", afirma.

Pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina, a historiadora Cristiane Garcia Teixeira contextualiza que o "ideal estritamente literário" da ABL se perdeu em 1912. "[Na ocasião] a eleição do engenheiro militar Lauro Miller abriu possibilidades para que esses 'notáveis de outras áreas' fizessem parte da instituição", conta ela. 

Por outro lado, o critério do livro publicado foi quebrado já na primeira formação da confraria. "É curioso: o estatuto interno da ABL foi contrariado a partir da sua fundação", aponta o publicitário Felipe Rissato, pesquisador independente que já descobriu vários textos então desconhecidos de Machado de Assis. 

O pesquisador frisa que Graça Aranha (1868-1931) integrou a casa antes de publicar seu primeiro livro, Canaã, de 1902. "Ele chegou a declinar do convite [para fazer parte do grupo] justamente por isso, mas foi convencido por Machado de Assis e Lúcio de Mendonça a aceitar", explica Rissato. 

Funções da ABL

"A princípio, a criação da ABL tinha como objetivo o reconhecimento da criação literária, a defesa da atividade do escritor e da literatura, a busca por respeito e pelo lugar deles na sociedade, por serem representantes da cultura nacional e, segundo Machado de Assis, manter a tradição literária para que ela perdurasse e fosse contada e transmitida nas páginas da "vida brasileira", explica a historiadora Teixeira. 

Em seu discurso inaugural, Machado de Assis declarou que a Academia nascia com a função de "conservar, no meio da federação política, a unidade literária". Organização privada sem fins lucrativos, a instituição teve papel importante nos acordos ortográficos de 1945 e 1990 e constantemente dialoga com academias de outros países de língua portuguesa. Lucchesi destaca ainda uma série de eventos realizados, de conferências e palestras a veiculação de podcasts.

A ABL publica o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, ferramenta que serve para sistematizar e dirimir dúvidas a respeito de grafias, prosódias e outras características do idioma – a sexta edição, disponível on-line, soma 382 mil entradas. 

Ao longo da pandemia, a instituição articulou para que livros fossem incluídos em campanhas de doação de cestas básicas e utilizou seu site para postar informações de conscientização acerca da gravidade da covid-19. "A Academia sempre se manifestou contra o negacionismo", diz o presidente dela. 

Falta de diversidade

Se a instituição parece preocupada em abrir as portas para nomes mais pop, é visível a falta de diversidade entre os imortais: a ABL é, basicamente, um grupo formado por homens brancos – atualmente, há apenas cinco mulheres.

Em 2006, quando foi eleito, o professor e ensaísta Domício Proença Filho foi questionado por uma repórter se ele seria o símbolo atual da etnia negra na instituição. Respondeu que não, alegando que não era "representante e sim representativo", cobrou que essa representatividade seja ampliada e, na mesma ocasião, afirmou que não era "um negro escritor e sim um escritor negro". 

Proprietário da Editora Patuá, que já publicou livros de Marco Lucchesi e prepara uma obra do também acadêmico Carlos Nejar, o editor Eduardo Lacerda reconhece a importância da ABL, mas também cobra uma maior representatividade. 

"A ABL, neste momento, não representa o país, sua diversidade, a diversidade de escritas etc.", enumera. "Mas seus membros, de forma individual, são muito importantes para a literatura e para o país. Além disso, há muitas atividades ali, eventos, conferências, cursos, palestras, oficinas, bate-papos, discussões que são muito importantes."

Ao mesmo tempo, Lacerda lembra que a ABL não é uma instituição pública, portanto, "apesar do distanciamento da sociedade, ela não se vê na obrigação de representar nada".

"E nada impede que uma outra academia, mais democrática e mais diversa, possa surgir. Espanta-me que nunca tenha surgido uma dissidência, grupos organizados de escritores e escritoras que pudessem mostrar um outro caminho, uma outra forma de conduzir uma academia. O que os impedia, o que nos impede?"

Lucchesi recorda que o que une os acadêmicos é o "sonho de Machado de Assis", dos demais fundadores e "das gerações que se colocaram na Academia". Para ele, a ABL sintetiza "uma forma profunda de realizar o diálogo com o respeito da própria alteridade". "As instituições culturais trabalham pelo desejo de se manifestarem, promoverem o diálogo, a cultura do encontro", afirma.