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A luta para aumentar a licença-paternidade no Brasil

Júlia Dias Carneiro
Publicado 22 de setembro de 2023Última atualização 15 de dezembro de 2023

STF decide que Congresso deve regulamentar licença-paternidade em até 18 meses. Tema já vinha ganhando engajamento crescente no Congresso e na sociedade civil, com cobrança de mais tempo de pais com bebês.

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Douglas Strelow com o filho Miguel
Douglas Strelow conseguiu um ano de licença-paternidade para cuidar do filho MiguelFoto: Privat

O empreendedor Douglas Strelow logo começou a notar os olhares tortos de vizinhos. Os meses passaram e ele continuou a rotina de passeios com seu neném, no sling ou no carrinho. Perguntas como "ele não vai para a creche?" ou "o que você faz mesmo? " traduziam o estranhamento de uma sociedade desabituada a ver o homem encarregado dos cuidados do bebê.

Strelow teve um privilégio raríssimo no Brasil: conseguiu obter uma licença-paternidade de um ano. É um contraste radical em relação à experiência masculina padrão. Os pais têm apenas cinco dias de licença garantidos por lei para se ausentar do trabalho e ficar com o recém-nascido, contra 120 dias assegurados às mães.

O empreendedor – pai de Miguel, de 1 ano e 7 meses – é um dos integrantes da recém-formada Coalizão Licença Paternidade, composta por ativistas da licença-paternidade estendida e obrigatória. A coalizão une esforços com um grupo de trabalho formado na Câmara dos Deputados em abril para debater mudanças na legislação sobre o tema. A ideia é reforçar o debate em Brasília e ampliá-lo para a esfera nacional, buscando maior apoio da população.

"Chama atenção que, hoje, a licença-paternidade tenha a mesma duração do carnaval", compara Strelow. "O tempo de festa é o mesmo que os pais têm para cuidar de uma criança e iniciar um vínculo para a vida toda."

O debate sobre a licença-paternidade esquentou nos últimos meses com o julgamento ligado ao tema no Supremo Tribunal Federal (STF).

Na quinta-feira (14/12), a maioria dos ministros da Corte entendeu que o Congresso Nacional deve regulamentar o direito à licença-paternidade aos trabalhadores urbanos e rurais. Com a decisão, os parlamentares terão prazo de 18 meses para regulamentar as regras do benefício.

Caso não haja uma definição até o fim desse prazo, decidiu o STF, caberá à próprio Corte determinar uma regulamentação.

A decisão foi fruto de uma ação protocolada em 2012, que acusou o Congresso de se omitir da tarefa de regulamentar a licença-paternidade. Isso porque, em 1988, a Constituição Federal fixou o prazo provisório de cinco dias para a licença, até que lei ordinária disciplinasse a matéria. Porém, 35 anos se passaram e a regulamentação nunca aconteceu.

Legislação poderá ter prazo para sair

A licença-paternidade introduzida pela Constituição de 1988foi um grande avanço em comparação ao único dia útil previsto em 1967 pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) – o suficiente apenas para que o pai pudesse registrar a criança.

Em 2012, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) apresentou ao STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 20.

Na ação, além de condenar a inércia do Congresso em legislar sobre o tema, a CNTS ressaltou os problemas trazidos por licenças maternas e paternas tão díspares, de um lado prejudicando mulheres no mercado de trabalho, de outro, privando pais da mesma relação de afeto com o filho.

Em seus votos, os ministros consideraram que a disparidade no período que mães e pais têm com os filhos alimentam a desigualdade de gênero e divisões desproporcionais nos cuidados domésticos e parentais.

Em pauta no Congresso

O avanço dos debates sobre a regulamentação da licença-paternidade no Congresso começou em abril, com a criação do grupo de trabalho (GT) sobre o tema na Câmara dos Deputados. Ele conta com 19 parlamentares de diversos partidos, além de representantes de órgãos públicos, entidades da sociedade civil organizada e sindicatos patronais.

A deputada Tabata Amaral (PSB/SP), que coordena o GT, ressalta a importância de abarcar representantes de todos os setores impactados por mudanças e "dar ao debate o tamanho que tem".

"Não é um debate de nicho, nem é um debate apenas das mulheres", enfatiza. "Envolve várias coisas: promover uma maior participação do pai na criação dos filhos, um vínculo maior entre pais e filhos, maior igualdade para as mulheres no mercado de trabalho, além de impactos na economia e na saúde mental", considera.

Integrantes da Coalizão Licença Paternidade em reunião de trabalho em São Paulo: da esquerda para a direita, Barbara Medeiros, advogada e co-fundadora do Coletivo.adv; Caroline Burle, Fundadora da Libherta; Douglas Strelow, empreendedor; e Camila Bruzzi, executiva de advocacy do grupo
Barbara Medeiros, Caroline Burle, Douglas Strelow, e Camila Bruzzi fazem parte da Coalizão Licença Paternidade Foto: Privat

Depois de uma fase inicial de consulta a especialistas e pesquisa sobre experiências de licença ao redor do mundo, o GT agora inicia a discussão política, travando conversas na Câmara e no Senado para buscar construir uma proposta de lei viável.

"Desde a Constituição de 1988, o Congresso está em dívida com a população", afirma Amaral. "Sabemos que há questões complexas a responder. Quanto vai dar esta conta? Quem vai pagar? De quantos dias estamos falando? Como conseguiremos incluir todos os modelos de família? Estamos buscando apresentar ao Congresso um texto que responda aos anseios da sociedade e tenha condições de ser votado e implementado."

Barreira do ego masculino

O Brasil não está longe da maioria dos vizinhos da América do Sul na duração da licença-paternidade, mas está a anos-luz de países como a Suécia, onde pai e mãe podem dividir 68 semanas de licença parental; a Coreia do Sul, onde pais têm 52 semanas recebendo parte do salário; e o Canadá, com 35 semanas distribuídas entre pai e mãe.

Na Alemanha, a partir de 2024, os pais poderão ter direito a duas semanas remuneradas após o nascimento do filho. Atualmente, só têm direito ao dia do nascimento da criança.

No país, a licença parental remunerada com 65% do salário é de 60 semanas (14 meses), que pode ser dividida entre os progenitores.  

No Brasil, a maior licença-paternidade possível é de 20 dias: funcionários de empresas que aderiram ao Empresa Cidadã recebem 15 dias além da licença padrão. No programa, mães recebem 60 dias além dos previstos por lei. O alcance da medida, porém, é reduzido – apenas 1% das empresas brasileiras aderiram ao programa, segundo a Receita Federal.

Como então o empreendedor Douglas Strelow conseguiu um ano inteiro de licença remunerada? É que ele presta serviço para um dos porta-vozes da causa no Brasil, o escritor e palestrante Marcos Piangers, autor de O Papai é Pop.

"Juntamos a vontade dele de proporcionar uma licença-paternidade extensa com a minha de usufruir disso", relata Strelow. Porém, ele admite que foi uma quebra de paradigma deixar de trabalhar por tanto tempo para compartilhar os cuidados do filho com a mulher.

"Eu tive que trabalhar isso na terapia, conversava muito com a minha esposa. Teve uma barreira do meu ego. Até no meu círculo próximo de amizades, eu tinha dificuldade de abordar o assunto. Não contava para todos, porque nem todos entendiam", relata.

De GT 'Petit' a Coalizão

Em junho, a bandeira da licença-paternidade estendida e obrigatória foi empunhada por quatro mulheres que começaram um grupo de trabalho. Era um desdobramento pequeno, na sociedade civil, do GT da Câmara dos Deputados – apelido foi de GT "Petit". Mas o tema reverberou, o grupo cresceu, ganhou corpo e foi rebatizado de Coalizão Licença Paternidade.

Hoje são 23 integrantes, incluindo representantes de 15 instituições. O momento tem sido de reuniões constantes para estruturar a governança, formular estratégias de campanha, atrair apoiadores e pedir ajuda de influenciadores para disseminar o debate.

A DW conversou com integrantes do grupo durante uma reunião de trabalho em um café em São Paulo. Mulheres ainda são a maioria, mas a meta é ser um grupo balanceado, considerando que a causa não é feminista, e sim de todos.

O grupo defende que pais presentes nos primeiros meses de vida das crianças constituirão os alicerces para diversas transformações estruturais nas famílias brasileiras, com impactos que vão desde a redução de abandono do lar e violência doméstica a uma redistribuição no papel de cuidadora solo que mães carregam até hoje.

"É necessário que os homens compartilhem os primeiros cuidados com os filhos para que possamos vislumbrar a possibilidade real de equidade de gênero, de redução de disparidades salariais e de aumento de oportunidades para mulheres no mercado de trabalho", defende Camila Bruzzi, empreendedora Social e executiva de Advocacy na Coalizão, e mãe de Sophia e de Felipe.