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Pé na praia: Uma paixão brasileira

Thomas Fischermann
27 de dezembro de 2017

Em uma viagem pela Transamazônica, o correspondente alemão Thomas Fischermann conheceu um morador apaixonado pela região. Para o homem, o encanto da rodovia está na liberdade com que se pode viver em seus arredores.

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DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Registrei o seguinte monólogo em uma viagem pela BR-230 no estado do Amazonas, a Rodovia Transamazônica. Um morador que vive há quase quatro décadas em um lugarejo minúsculo queria me recomendar sua terra como local turístico. Considerei isso uma declaração de amor maravilhosa – ao sonho da vida livre que muitos ainda têm no norte do Brasil. O homem sofre com as marcas da malária, do álcool e do trabalho árduo, mas não trocaria seu lugar pelo de mais ninguém no mundo:

"Eu cheguei na região amazônica há 37 anos. Ainda era uma região muito difícil, de difícil acesso, muita doença, muita malária, condição financeira muito ruim, as estrada muito ruim. Não existia asfalto nas estrada, mas a minha paixão era a Transamazônica. A Transamazônica não era assim que, dizer assim, que... A rodovia não nasceu para nós. Nós nascemos para ela. Porque tem muita gente que nasceu na beira da Transamazônica, mas não consegue ficar.

Quem nasceu para ela fica com ela, se apaixona, se encanta. Quem não nasceu para ela nasce aqui beirando ela, como amazonense, e vai embora, para São Paulo ou outra cidade maior. Agora para nós, ela pode se acabar, em buraco, poeira. A ponte cai, o rio se alarga, mas nós continuamos aqui. O encanto da Transamazônica não numa estrada boa ou num carro bonito, o encanto dela na liberdade.

Quando se viaja pela rodovia, se encontram matutos, que fazem cocô no mato, não precisam de banheiro, não precisam de papel higiênico. Eles usam folha mesmo, entendeu? Você pode andar de chinelo, descalço, sem roupa. Aqui você pode escolher quem quer ser e como quer viver.

Eu gosto muito daqui. Tem dificuldade. Dificuldade muito grande. Por exemplo, a saúde é muito ruim. Aqui, onde eu moro, tem um médico para seis, sete mil habitantes. Tem dia que ele cuida de 15 pessoas e vai embora, deixando 30 sem consulta. Então a nossa saúde aqui é esperar por Deus. O nosso médico é Deus. E o outro que tem aqui, o médico, ele faz o que pode. Não faz cirurgia aqui, tem que levar para a cidade. 

Aqui não tem faculdade. Tem que estudar só o básico e depois parar de estudar. Tem que ir trabalhar no campo, ou na serraria, ou nós vai para o garimpo. Outros vão para o pasto, mexer com boi, tirar leite. Então, a dificuldade é muito grande. Mas é a dificuldade que você supera com a vantagem de viver, com a liberdade, o silêncio, a tranquilidade.

Já não tá mais como era muitos anos atrás, quando comecei aqui. Mas ainda continua sendo um lugar encantador. Eu acho que um dia os europeus, americanos, asiáticos vão conhecer a Transamazônica, eles vão ter uma surpresa muito grande. A cabeça deles é assim ... Eu penso, eu não sei, eu nunca... Eu penso que eles achavam que a Transamazônica era só uma estrada no meio de nada, que ligava nada com lugar nenhum. Só bicho e selva. Mas a Transamazônica não é isso. A Transamazônica tem gente. Tem pessoas, viu? E todas essas pessoas têm um sonho.

A estrada é antiga, mas tem só 15 anos que chegou muita gente, família, comércio. Começou a chegar. Talvez mais um pouquinho. Chegou madeireiro, fazendeiro, comerciante. Lojinha. Geralmente, as pessoas que chegaram aqui não tinham condições de viver lá, de onde eles vieram, por causa de emprego. Ganhavam pouco dinheiro lá, e aqui era mais fácil. Ganharam um pouco mais, mais emprego, terra mais barata. A maioria veio para formar sítio, criar porco, criar galinha, fazer a lavoura. Outros vieram pela madeira. Aqui tem muita mata. A maioria chegou para conseguir coisas melhores.

Eu vim por isso também, porque onde eu tava tinha crise. Você sonha em ter uma casa, um pedaço de terra, uma vida melhor para seus filhos, para sua esposa, né?

E aí, você chega, e você nem consegue assim. Mas você fica aqui dez, 20 anos. As criança cresce, e você nem passa o que trouxe, mas você gosta daqui. O pessoal de fora vai. Vocês vivem com medo lá. Vocês não têm liberdade. Eu já vi na televisão. Vocês têm tsunami, guerra, e agora tem lá os loucos, qual é o nome dessa religião? Islamismo, que matando, os maluco lá, os doido. Para entrar agora num país de vocês tem que deixar o nome, talvez para saber se foi um terrorista que vai explodir um avião.

Aqui na Transamazônica, você pode vir. Um europeu vem, com monte de mala, e ninguém vai revistar suas malas para procurar uma bomba, para acabar com a Amazônia. Ninguém vai fazer isso, entendeu? Você vai chegar aqui e você vai ficar, comer, beber, dormir. Tomar uma cerveja, uma cachaça, dançar forró, e ninguém vai ter medo de você. Essa é a liberdade que eu falo."

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. Em sua coluna Pé na praia faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.

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