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Pé na praia: Minha dentista, minha culpa

Thomas Fischermann
20 de dezembro de 2017

Ninguém pode competir com os brasileiros no quesito escovar dentes, escreve o colunista alemão Thomas Fischermann, que vive momentos de tensão quando visita um consultório odontológico no Rio.

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Thomas Fischermann
O colunista Thomas Fischermann vive no Rio de JaneiroFoto: Dario de Dominicis

Não gostava de encontrar Juliana. Mas é maldade dizer isso, porque a Juliana é uma pessoa simpática que conheço no Rio de Janeiro. Boa conversa, sorriso largo, mediadora passional de contatos sociais e uma profissional muito competente. O último aspecto é o problema. Juliana é minha dentista, e imagino que para uma brasileira seja muito difícil ser dentista de um alemão.

É o seguinte: cuido muito bem de meus dentes. Uso uma escova de dente elétrica, fio dental, hastes de plástico e líquidos perigosamente brilhantes. Há anos não tenho dor de dente. Mas ninguém pode competir com os brasileiros no quesito escovar os dentes.

Uma consultora que prepara trabalhadores estrangeiros para uma estadia no Brasil (não inventei isso) mencionou há poucos dias como um dos pontos mais importantes: "Avisamos as pessoas que os brasileiros escovam os dentes sem parar e em todos os lugares."

A consultora tinha toda razão. Já estive em banheiros de sedes de multinacionais em São Paulo ou em churrascarias no Rio de Janeiro onde homens ficavam na pia, um ao lado do outro, espuma na boca, suores na testa, escovas de dente em ação. Ficava feliz por não terem instalado chuveiros. Tomar banho quatro vezes por dia é a outra obsessão por higiene deste país.

Aqui, falamos sobre o que é, em minha opinião, uma mania nacional, uma neurose coletiva clássica. Não sou médico, mas li com frequência que escovar os dentes e passar fio de dental múltiplas vezes ao dia não é bom. Na drogaria que frequento, recentemente começaram a vender uma pasta para consertar o esmalte dentário que esteja ficando corroído. Para mim, é claro que isso acontece por causa de escovação em excesso.

Vocês sabiam que o Brasil, de acordo com um estudo recentemente divulgado, emprega 15% de todos os dentistas do planeta, apesar de aqui viverem somente 2,7% da população mundial?

Mas obsessões se deixam perceber exatamente por não serem muito lógicas. São de natureza psicológica, têm a ver com sentimentos de culpa e medos, com raízes na educação desde a infância. Tomar banho quatro vezes por dia traz, da mesma forma, poucas vantagens para a higiene.

Uma antropóloga brasileira me contou, há alguns anos, por que achava isso completamente sem sentido. Depois é preciso voltar à vida nas ruas, onde a cultura nacional exige abraçar e beijar pessoas desconhecidas, independentemente de estarem resfriadas ou suadas. "Minutos depois, na sociedade brasileira, seria necessário tomar banho de novo."

Pessoalmente, penso que aqui se abrem inúmeras possibilidades para a compreensão entre os povos – entre brasileiros e alemães. Pois sempre pensei que nós, alemães, fôssemos os campeões mundiais em obsessões higiênicas. Já ouviram falar em fetiche por limpeza? Se ainda não, é só dar uma passadinha na casa do meu cunhado. Quando ele recebe visitas, já fica preparado com os paninhos de limpeza bem próximos à porta de entrada. Em cada suspeita de farelos ele sai correndo atrás dos visitantes, de joelhos, com o tal pano na mão.

Nós alemães provavelmente também somos, junto com os americanos, os maiores usuários mundiais de travesseiros com filtros de poeira antialérgicos. Abrimos ovos com colheres de plástico feitas de material com produtos químicos antibacterianos, carregamos conosco para todo lado sprays desinfetantes da marca Sagrotan.

Cresci rodeado de anúncios da televisão com homenzinhos que, como super-heróis, lutavam contra ácaros gigantescos, placas bacterianas ou mofo. Tais anúncios de produtos de limpeza eram com frequência mais emocionantes que o programa principal e marcaram profundamente o meu país. Existem até mesmo alemães que levam a própria roupa de cama a hotéis. E antes de fazer a cama usam o spray da Sagrotan.

Portanto, apesar de pequenas diferenças, acredito numa profunda harmonia psicológica entre brasileiros e alemães. Só não me sinto à vontade quando vou à dentista Juliana. Quando vou fazer uma limpeza nos dentes, será que ela vai perceber que não os escovo com a mesma frequência que os brasileiros?

Uma vez, fui até mesmo a outra clínica dentária, chamada Boca Limpa, antes de ir ao consultório da Juliana. O homem de lá fez seu trabalho criteriosamente – alicates, brocas, escovas, polimento. Falava o tempo todo de violação aos direitos humanos no Oriente Médio, enquanto cutucava com seus instrumentos minha gengiva.

Juliana não percebeu nada de diferente. "Está com boa aparência", disse quando abri a minha boca, como sempre, e então colocou uma câmera lá dentro. Apertou uma tela plana contra o rosto. Regulou tudo de forma que meus dentes radiantes não parecessem mais tão tão tão brancos. Como assim? Certamente nem eram meus dentes mesmo. Eram filmagens da boca de um modelo dentário profissional para despertar a má consciência com relação à higiene bucal.

Então, Juliana acionou um controle e pôs seus aparelhos odontológicos em ação. Escavou e remexeu. Em cada fisgada as minhas mãos se agarravam à cadeira de couro. Fechei os olhos. Visualizei todos os almoços e conferências no escritório, após as quais não fui ao banheiro para ficar, lado a lado com meus colegas brasileiros, esperando a minha vez de escovar os dentes. Estava satisfeito. Juliana limpou meus dentes e me livrou de toda a culpa.

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. Em sua coluna Pé na praia faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.

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