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Os paralelos e paradoxos do "mundo árabe"

Soraia Vilela4 de outubro de 2004

Entre os convidados da Feira do Livro de Frankfurt estão o egípcio Nagib Mahfuz, o sírio Adonis e a argelina Assia Djebar. Entre as críticas: poucos "escritores do exílio" e a visão do mundo árabe como "uma panela só".

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Sede da Feira do Livro em Frankfurt: literatura árabe em focoFoto: Frankfurter Buchmesse/Hirth

As críticas de que o evento olha sem discernimento para a produção literária dos países árabes – cujas realidades são completamente díspares – são muitas. Apesar delas, os defensores da feira esperam que o contato mais próximo com o "Oriente" consiga transformar um pouco o leitor europeu, fazendo com que este enxergue menos os árabes sob o manto do "Outro", como já apontava em 1978 o crítico Edward Said em seu Orientalismo.

"Como pode uma diversidade dessas ser reunida assim?", pergunta o autor marroquino Tahar Ben Jelloun, em texto publicado pelo semanário Die Zeit. "Quais são os pontos que existem em comum entre as monarquias do petróleo na região do Golfo e os países do Maghreb, cuja origem da maioria da população não é árabe, mas berbere?", conclui o autor.

Vozes do exílio

Tahar Ben Jelloun, marokkanischer Schriftsteller, Porträt
Escritor marroquino Tahar Ben JellounFoto: dpa

Outro ponto polêmico é a participação não representativa de autores árabes que vivem em países ocidentais – principalmente na Europa e aí, acima de tudo, na França. E que, muitas vezes, escrevem em outras línguas que não o árabe. Separar o joio do trigo, ou seja, aqueles que vêm a Frankfurt em nome de seus Estados e cujo significado no cenário literário é mínimo, da "verdadeira literatura", pode não ser uma tarefa das mais fáceis.

Pois avaliar o mercado editorial em países que falam o árabe é um empreendimento complexo, até mesmo para os que conhecem o cenário "de dentro". Fatores como a guerra civil libanesa, por exemplo, foram decisivos no desenvolvimento da literatura em língua árabe nos últimos anos. Beirute, um dia pólo central do mercado editorial no Oriente Médio, presenciou no início dos anos 80 uma evasão em massa de jornalistas e escritores. Um êxodo de formadores de opinião, que fez com que surgissem nichos de produção de cultura árabe – editoras, festivais de cinema, exposições de artes plásticas – em cidades européias, principalmente em Paris.

Parentesco sim, unidade não

Buchmesse in Kairo
Feira do Livro no CairoFoto: AP

Com a "queda literária de Beirute", o Cairo tomou a posição de centro do mercado editorial nos países árabes. Um mercado, diga-se de passagem, apontado pela mídia européia como ainda muito difuso e de parco alcance, principalmente considerando o alto índice de analfabetismo na região.

Mesmo assim, o cenário atual aponta, segundo o diário suíço Neue Zürcher Zeitung, para alguns nichos espalhados pela região: um boom de poetas libaneses e iraquianos; uma cena teatral que abandonou o Líbano após a guerra civil, tendo ancorado 20 anos mais tarde na Tunísia; um cenário de pequenas editoras no Marrocos. Sendo que, nesta diversidade da produção cultural em cada país, é possível "verificar algum parentesco entre cada geração de artistas ou literatos, mas praticamente nenhuma unidade" entre as nações, observa o jornal.

Terceira via

Assia Djebar
Assia Djebar, escritora argelina radicada em ParisFoto: AP

A mídia européia acredita que a produção cultural, em cada uma dessas cidades espalhadas pelo mundo árabe, passa no momento por um período de transição, que inclui resgatar tradições e buscar para as mesmas novas roupagens.

As observações de Catherine David, ex-curadora da documenta de Kassel e atual diretora do Centro Cultural Witte-de-With, em Roterdã, são citadas pelo Neue Zürcher Zeitung: "A arte árabe dificilmente pode se livrar da polarização entre duas posições extremas: de um lado, uma compreensão acadêmico-conservadora da arte atrelada ao Estado e financiada por este, que defende uma representação convencional da cultura nacional. Do outro, formas também padronizadas de arte contemporânea, como são disseminadas por revistas e outras mídias (ocidentais). Uma 'terceira via' seria necessária".

Mostrar a cara do "resto do mundo"

Edward Said
Edward Said, crítico palestino radicado nos EUA, falecido em 2003

À sombra ou à frente de tantas dúvidas, transições e controvérsias, estarão em Frankfurt a partir da próxima quarta-feira (6/10) mais de 150 editoras provenientes do mundo árabe. Espera-se que o evento consiga reafirmar linhas de pensamento, que questionam os conceitos rasos de um "orientalismo" oposto ao "ocidentalismo", nivelando tudo num homogeneizador e inconseqüente "choque de culturas".

E que as pontes construídas através de contatos via literatura possam contribuir para uma das árduas tarefas das teorias pós-coloniais: rasgar as máscaras etnocêntricas, mostrando que o "resto do mundo" não se resume às aldeias arcaicas e empoeiradas ou às metrópoles caóticas e barulhentas que povoam o repertório dos países "ocidentais" quando se fala de regiões situadas além de suas fronteiras.

"Guerras, crises, terroristas: a imagem do mundo árabe é dominada por más notícias. Se a Feira de Frankfurt, mesmo tendo isso como pano de fundo, conseguir atrair a atenção do público e a sensibilidade dos cadernos de cultura dos jornais para um outro lado da realidade árabe, ela já terá sido um sucesso", conclui o diário taz.

Pena que Edward Said – o precursor da visão que aponta o conceito de Oriente como a construção ocidental de um paradigma do que vem a ser o Outro – não esteja mais aí. Embora se estivesse, talvez fosse se sentir, como no título de sua autobiografia, mais uma vez "fora de lugar".