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EsporteCatar

Final da Copa mostrou que o futebol nunca pertencerá à Fifa

Imagem mostra comentarista de esportes Matt Ford, da DW
Matt Ford
19 de dezembro de 2022

A Fifa traiu o futebol ao conceder a Copa do Mundo ao Catar com fins geopolíticos. Mas Lionel Messi e a Argentina mostraram que o jogo bonito sempre vencerá.

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Infantino Messi e o emir do Catar
Foto: Martin Meissner/AP/picture alliance

Mesmo no momento da coroação do maior triunfo pessoal de Lionel Messi, Gianni Infantino e o xeque Tamim bin Hamad Al Thani não deixaram de tentar se colocar no centro dos holofotes. 

Enquanto o emir do Catar envolvia o capitão argentino em uma bisht (capa masculina usada no mundo árabe e associada à realeza ou elite social) preta e dourada, o presidente narcisista da Fifa agarrou-se ao cobiçado troféu pelo maior tempo possível, desesperado para aparecer nas fotografias e filmagens do grande momento de Messi.

No final, é claro, Infantino e Fifa olharão para trás e considerarão a Copa do Mundo de 2022 no Catar um trabalho bem feito. Nunca poderia ter sido diferente. Mas isso não significa que eles ganharam.

Uma vitória para a Fifa e o Catar...

Quando a entidade máxima do futebol mundial conspirou para conceder o torneio ao Catar, em 2010, ela o fez segura de que, do ponto de vista logístico, os megaeventos globais modernos são mais bem sediados por autocracias: sem nenhum parlamento democraticamente eleito para questionar o derramamento de mais de 220 bilhões de dólares em infraestrutura, nenhuma imprensa livre para investigar as mortes inexplicáveis de centenas, talvez milhares, de trabalhadores migrantes explorados e nenhum irritante ativista dos direitos humanos para defender os direitos das mulheres ou os dacomunidade LGBT.

Em vez disso, a Copa foi uma oportunidade para o populista Infantino fazer o gesto de dar uma banana às tradicionais potências europeias da Uefa, além  de bajular as dezenas de associações nacionais de futebol menores em sua candidatura à reeleição, sob o argumento de disponiblizar futebol para todos.

Quanto ao Catar, foi menos um exercício bem sucedido de sportswashing (Nota da redação: uso de esportes para fins políticos e abrandamento de questões políticas polêmicas por meio do esporte), e mais de diplomacia geopolítica e na segurança nacional.

Antes de seus empreendimentos no esporte global, o Catar era um país minúsculo, rico em petróleo, mas indefeso e tão vulnerável ao bloqueio (ou coisa pior) de vizinhos mais poderosos, assim como o Kuwait do início dos anos 90.

Mas agora o Catar está bem e aparece de verdade no mapa mundial, é um parceiro internacional indispensável na política, economia, esportes e lazer. Todos ganham − menos o futebol, o esporte que tornou tudo isso possível, o jogo do povo tirado daqueles para quem ele mais significa, abusado e instrumentalizado para o benefício de uma pequena elite.

...mas o futebol nunca será verdadeiramente deles

No entanto, mesmo no final de um torneio que levou à hipercapitalização do futebol a níveis de obscenidade maiores do que nunca, uma final vibrante da Copa do Mundo nos lembrou que o jogo nunca será realmente deles.

Em campo, nos foi reavivado na memória que o futebol pertence aos imensuráveis talentos de Lionel Messi e Kylian Mbappé, representando diferentes gerações do futebol, mas contribuindo igualmente para uma final que certamente será lembrada como a maior de todos os tempos.

Nas laterais, fomos lembrados que o futebol pertence a treinadores como Didier Deschamps, cuja dupla substituição no primeiro tempo pareceu brutal para Olivier Giroud e Ousmane Dembélé, que foram retirados, mas inspiradora quando Kolo Muani e Marcus Thuram ajudaram Mbappé a catapultar a França de volta para o empate.

Nas arquibancadas, apesar das tentativas da Fifa de transformar a Copa do Mundo em um grotesco evento comercial com preços extorsivos de ingressos, contagem regressiva para o pontapé inicial, shows leves e música pop ensurdecedora para uma classe alta global, uma massa de argentinos com suas camisas de clube icônicas, faixas feitas à mão e cânticos melódicos maravilhosos nos lembraram como realmente é a autêntica cultura dos torcedores de futebol.

E, em Buenos Aires, as cenas de alegria dos torcedores que se espalhavam pelas ruas para celebrar nos lembraram da importância do futebol na identidade nacional − e de fato em outras formas de identidade, como demonstrou o Marrocos.

Futebol para o mundo muçulmano − graças ao Marrocos, não ao Catar

De fato, o "Leões do Atlas" merecem uma menção especial, tornando-se a primeira equipe africana e a primeira do mundo árabe a alcançar as semifinais da Copa do Mundo − realizada pela primeira vez em um país muçulmano.

Jogadores do Marrocos rezam em campo
Marrocos ficou em quarto lugar na Copa do Catar Foto: Marvin Ibo Güngör/picture alliance/GES

Numa coisa, Infantino & Cia. estão certos: o mundo islâmico merecia uma Copa do Mundo − uma questão tão importante para a Fifa que o Marrocos, uma nação de genuína paixão pelo futebol e uma vibrante cultura de torcedores, teve propostas para sediar a Copa do Mundo rejeitadas em cinco ocasiões.

Foi, portanto, animador e positivo ver jogadores e torcedores marroquinos celebrando seu caminho para um histórico quarto lugar com orações e cânticos islâmicos, um lembrete de que o futebol também pertence a eles − só que não deve ser usado como um véu para encobrir uma fraude geopolítica no Catar.

As imagens de Lionel Messi finalmente levantando a Copa do Mundo para o céu do deserto, as icônicas faixas azuis e brancas de sua camisa argentina obscurecida pela bisht preta oferecida pelo emir, e Infantino, sem dúvida à espreita atrás de alguns flashes, ficarão para sempre para nos lembrar o quanto o futebol tem sido maltratado.

Mas essas imagens também nos lembrarão do brilho do futebol que as precedeu, e que este nosso belo jogo nunca morrerá.

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Matt Ford é repórter e editor da DW Sports especializado em futebol europeu, torcida e política esportiva. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente a da DW.