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Kiarostami deixa legado promissor para o cinema iraniano

Augusto Valente5 de julho de 2016

Morre um dos maiores exponentes da sétima arte no Irã. No entanto, muito graças à atuação de Kiarostami, o país já é uma grandeza cinematográfica de porte mundial, tendo posto garantido em grandes festivais, como Cannes.

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Abbas Kiarostami (1940-2016)
Abbas Kiarostami (1940-2016)Foto: emruzonline.com

Em vida, Abbas Kiarostami foi aclamado por colegas do porte de Martin Scorsese, Akira Kurosawa e Jean-Luc Godard. Este último teria declarado: "O cinema nasceu com Griffith e termina com Kiarostami."

A crer nas palavras do diretor francês, então, a genealogia da sétima arte, iniciada com os filmes mudos do americano D.W. Griffith (1875-1948), teria se encerrado definitivamente nesta segunda-feira (04/07), na clínica de Paris em que o cineasta iraniano nascido em 1940 sucumbiu a um câncer gastrointestinal diagnosticado em março último.

Por outro lado, a avalanche de homenagens prestadas a ele também evidencia a importância crescente do cinema de autor iraniano na cena mundial – apesar das restrições impostas aos cineastas que, como Kiarostami, optaram por permanecer no país em seguida à Revolução Islâmica de 1979. No Irã, o cinema continua vivo.

Falando à imprensa durante o último Festival Internacional de Cannes, em maio, o iraniano definira assim o panorama cinematográfico de seu país: "De um lado, há o cinema estatal, financiado pelas autoridades, [...] e aí há o setor independente, que está florescendo."

Para confirmar essas palavras, na mesma competição seu compatriota Asghar Farhadi obteve dois prêmios – ocorrência rara em Cannes –, de melhor roteiro e melhor ator, com Forushande (O vendedor). Jim Jarmusch, ícone do cinema independente americano, que na ocasião competia com Paterson, definiu o Irã como "um dos jardins do cinema em nosso planeta".

Dos primeiros curtas a Cannes

Assim como outros artistas iranianos, em 1979 a primeira intenção de Kiarostami, também atuante como poeta, foi se colocar a salvo do regime dos aiatolás, buscando exílio no exterior. No entanto, acabou decidindo permanecer em seu país, onde, segundo suas próprias palavras, via melhores chances de se desenvolver artisticamente. Nos últimos anos, também residia na França.

Tomando impulso no movimento cinematográfico iraniano denominado Nova Onda, ele começara a carreira aos 30 anos, com um curta-metragem. Já em 1974 atraía as atenções da crítica internacional com o longa premiado O passageiro, sobre um garoto que mente e rouba para juntar o dinheiro necessário a financiar uma viagem de ônibus, a fim de assistir a uma partida de seu time de futebol favorito.

Após dezenas de outras produções, incluindo documentários, a arrancada definitiva chegou em 1997, com a Palma de Ouro em Cannes para Gosto de cereja. O roteiro – também da autoria de Kiarostami, como praticamente todas as suas produções – enfoca um caminhoneiro na desesperada busca por quem se disponha a discretamente enterrá-lo numa cova já preparada sob uma cerejeira nos montes, depois que ele cometesse suicídio.

Abbas Kiarostami
Carreira cinematográfica de Kiarostami (esq.) começou em 1970Foto: Puyeshgaran.ir

Arte isolada do quotidiano

Embora na maior parte de sua obra ele tenha se mantido fiel aos atores iranianos e ao idioma persa, nos últimos anos Kiarostami também trabalhou com estrelas europeias, como Valeria Bruni-Tedeschi (Tickets, 2005, codirigido com Ermanno Olmi e Ken Loach) e Juliette Binoche (Cópia fiel, 2010). Seu último longa foi Um alguém apaixonado (2012), com elenco inteiramente japonês, abordando a estranha relação entre uma jovem prostituta de Tóquio e um viúvo.

Mesmo penetrando numa ampla variedade de temas e existências, o cineasta natural de Teerã manteve uma visão relativamente purista de arte: "Claro que tenho uma opinião particular, tomo posição, mas meus filmes não devem ser contaminados com temas políticos e o noticiário. Acredito que quanto mais a arte se envolve com as coisas quotidianas, mais perde a sua originalidade ou sua essência."

Note-se que essa declaração foi feita em 2010, quando ele levava Cópia fiel a Cannes, após ter feito um comovente apelo pela libertação do também diretor e compatriota Jafar Panahi, na época preso no Irã.

Juliette Binoche em "Cópia fiel" (2010)
Iraniano dirigiu Juliette Binoche em "Cópia fiel" (2010)Foto: MKD Diffusion

Apenas poucos dias antes de sua morte, Kiarostami recebera mais uma distinção, ao ser convidado para integrar a Academia de Cinema de Hollywood, juntamente com centenas de outros cineastas. Com essa iniciativa, a instituição procura reagir às recentes acusações de falta de diversidade na seleção para o Oscar.

Censura transmutada em virtude artística?

Diante do continuado avanço da produção cinematográfica do Irã no palco internacional, o crítico Scott Roxborough, da revista The Hollywood Reporter, atribui tal sucesso a um papel de "ponte entre os mundos ocidental e muçulmano".

"Para os públicos ocidentais, o cinema iraniano tem sido a combinação mais perfeita do conhecido com o estranho", explicou à agência de notícias AFP. "O estilo visual e a narrativa são familiares, mas o enfoque político e cultural são fascinantemente exóticos."

Segundo Roxborough, o desafio de operar dentro das regras estritas impostas pela censura iraniana – encarregada de aprovar cada script antes de permitir as rodagens – acabou por reverter em vantagem para os cineastas do país, ao forçá-los a criar "uma linguagem cinemática sutil e ímpar".

Um caso eloquente é o de Jafar Panahi, amigo e protegido de Kiarostami. Como punição por tentar realizar um documentário sobre os protestos antigoverno no Irã, em 2009, ele foi proibido de fazer filmes por 20 anos. Para contornar a sanção, disfarçou-se de taxista e entrevistou os passageiros sobre os problemas sociais nacionais. Por Táxi Teerã, ele recebeu o Urso de Ouro do Festival de Berlim (Berlinale) em 2015.

Cena de "Um alguém apaixonado"
"Um alguém apaixonado", a última obra: radiografia de uma relação assimétricaFoto: Festival de Cannes 2012

"Estando impossibilitados de tratar diretamente de questões políticas, [os cineastas iranianos] passaram a olhar para dentro, enfocando histórias pessoais, muitas vezes de infância", analisa o crítico Roxborough. "Como a linguagem metafórica foi considerada suspeita, eles se especializaram num realismo que, na superfície, parece um documentário, mas que assumiu um caráter quase fabuloso, mítico."

Como sempre, a versão oficial é um tanto diversa. Nesta terça-feira, o ministro iraniano da Cultura e Orientação Islâmica, Ali Janati, saudou Kiarostami como "um vanguardista com abordagem humanista e moral". "Com suas obras inovadoras, modernas e belas, ele deu uma nova definição ao cinema e posicionou alto o nome do Irã nos meios artísticos do mundo."

O corpo de Kiarostami será trasladado da França a fim de ser sepultado em seu país natal.