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A anatomia da migração

Soraia Vilela10 de novembro de 2005

Projeto interdisciplinar une artes plásticas, cinema e pesquisa acadêmica para reconstituir a trajetória dos migrantes na Alemanha a partir do pós-guerra.

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Viagem pela Iugoslávia, agosto de 1972Foto: presse

A idéia fundamental é eliminar a conotação negativa que a palavra "migrante" carrega, abolindo a associação quase automática do vocábulo a conceitos como periferia e margem. "Deixando de lado as referências problemáticas que a palavra costuma despertar", anuncia o prefácio do catálogo de 900 páginas que acompanha o Projeto Migração. Um catálogo escrito em vários idiomas, que vão do grego ao italiano, passando pelo árabe e coreano, até o português e vietnamita.

O Projeto Migração, desenvolvido pelo Kunstverein de Colônia, pelo Centro de Documentação DOMiT e por duas instituições acadêmicas – o Instituto de Antropologia Cultural e Etnologia Européia da Universidade de Frankfurt e o Instituto de Teoria da Forma e da Arte da Escola Superior de Artes de Zurique – cria pontos de interseção entre as discussões acadêmicas sobre a migração e a produção de arte e mídia. Dando início a uma discussão movida por palavras-chave como cruzamento de fronteiras, identificação étnica e visão do Outro.

Em defesa de sociedades pós-nacionais

Projekt Migration
Rosemarie Trockel: 'Sem Título' (1986)Foto: Rosemarie Trockel

Ao colocar os migrantes no centro das mostras que integram o projeto, os curadores – entre eles vários estrangeiros ou descendentes destes – procuram chamar a atenção da opinião pública para novas formas de enxergar a sociedade alemã.

Formas que fogem da dicotomia "maioria versus minorias", que questionam a validade de conceitos como "identidade européia" e que sugerem a predominância de um olhar cosmopolita e de uma cidadania pós-nacional.

"O modelo de Estados nacionais é também o de uma Fortaleza Europa, logo, não é o formato de futuro", observam os curadores, que não deixam passar despercebida a estreita relação entre processos migratórios e a política de segurança dos Estados europeus.

No caso da Alemanha, o projeto analisa dois momentos-chave na história do pós-guerra: a onda migratória de "trabalhadores convidados" (gastarbeiter) durante o boom econômico dos anos anos 50 e 60 e o fluxo de imigrantes do Leste Europeu após a queda do Muro de Berlim.

Imigrantes de ontem e de hoje

Projekt Migration
'Turcos na Alemanha' (1976), fotografia de Candida HöferFoto: Candida Höfer

As várias faces do projeto recapitulam em debates, muitas vezes dolorosos, a história de imigrantes espanhóis, italianos, portugueses e gregos na Alemanha – imigrantes provenientes de países que hoje, membros da União Européia, fecham suas portas frente a refugiados, que acabam se afogando diariamente nas águas do Mediterrâneo.

Como se pode observar em Mourir aux portes de l`Europe (Morrer às portas da Europa), que expõe a estatística de quantos refugiados morrem afogados ou sufocados nas carrocerias de caminhões, ao tentarem entrar ilegalmente na União Européia.

Alemanha Oriental: história esquecida

Ao lado de fotografias, instalações ou vídeos de 80 artistas, entre eles Rosemarie Trockel, Candida Höfer e Marcel Odenbach, há nas mostras que compõem o projeto exemplares de contratos de trabalho, descrições da política de recrutamento de trabalhadores na Itália ou em Portugal na década de 50, fotos dos migrantes ao deixarem seus países de origem e descrições de cenas de despedida.

Além de discutir a migração interna na Europa, o projeto volta os olhos para marroquinos, tunisianos e para aqueles que viveram na ex-Alemanha Oriental. Durante o regime comunista, viveram no país angolanos, moçambicanos (15 mil em 1989, após a queda do Muro de Berlim) e vietnamitas (59 mil), cujas condições de vida estavam longe de ser ideais.

A trajetória desses imigrantes na República Democrática Alemã (RDA) é, diga-se, um capítulo da história muito pouco conhecido mesmo dentro do país reunificado.

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De Fassbinder a Akin

Angst essen Seele auf
Cena de 'O Medo Devora a Alma' (1974), de Rainer Werner Fassbinder

As várias exposições – espalhadas por cinco espaços em Colônia – são formadas por documentos históricos e por obras de arte contemporânea que refletem sobre o tema. Acompanhados em parte por uma "trilha sonora da migração", formada, entre outros, pelas colagens dos Brothers Keepers, um coletivo formado por rappers afro-alemães no país.

Já os ciclos de cinema que fizeram parte do desenrolar do projeto nos últimos quatro anos apresentam uma retrospectiva do que se chama "cinema da migração". Um cinema que vai da parábola de Rainer W. Fassbinder O Medo Devora a Alma (Angst essen Seele auf), de 1973, até Contra a Parede (2003), do diretor alemão de ascendência turca Fatih Akin. Fassbinder é também lembrado como um dos poucos que se confrontaram com a situação dos migrantes ainda nos anos 70.

Sociedades em trânsito

Através de obras de arte e da documentação do cotidiano, o Projeto Migração traça a genealogia das fronteiras européias e das "sociedades em trânsito" que hoje compõem o continente. Um continente que, mesmo diante de seu passado colonial, insiste em querer "manter a periferia em seu devido lugar, ou seja do outro lado da cerca", como assinala o teórico Stuart Hall em texto publicado no catálogo do projeto.

Por um ou outro viés (artístico ou documental), o contexto histórico vai sendo reconstruído e a subjetividade dos migrantes ganha espaço. Seja através da réplica de uma sala de estar sufocante do imigrante turco dos anos 70 na Alemanha (na obra das artistas Anny e Sibel Öztürk) ou de um velho Ford Transit estacionado na porta do Kunstverein em Colônia – o carro mais utilizado pelos trabalhadores turcos quando seguiam em férias "para casa" nas décadas de 50 e 60, levando presentes e bens de consumo.

Simbologia da mala

Outra forma de refletir sobre a migração se dá através da exposição de malas dos imigrantes que chegavam à Alemanha durante o milagre econômico no pós-guerra. A mala como objeto representativo da liberdade de ir e vir, mas que na maioria dos casos adquire a conotação de uma "mobilidade forçada".

No lugar do glamour daqueles que procuram o Outro por um desejo de experimentar o desconhecido, o catálogo do Projeto Migração relembra também os imigrantes que acabam marginalizados ou simplesmente esquecidos pelo establishment.

Aqueles considerados "indesejáveis" a partir de critérios étnicos e/ou econômicos. Mas também a autoconfiança das mulheres italianas, que organizaram sozinhas greves nos anos 70, servindo de exemplo de conscientização para os colegas alemães.

Retorno imaginário

Enquanto isso, as nações de origem desses migrantes vão se tornando cada vez mais pálidas num canto qualquer de suas memórias. "Quanto mais tempo se vive no exterior, tanto mais um retorno ao país de origem se desloca à categoria do imaginário. A crença em uma volta pode se perpetuar por décadas, mesmo que falte qualquer condição real que permita este retorno", observam Tom Holert e Mark Terkessidis no catálogo do projeto.

Projekt Migration
Angela Melitopoulos: 'Sem Título' (1995)Foto: Angela Melitopoulos

Os filhos desses migrantes, por sua vez, acabam crescendo numa terra afetiva de ninguém, num campo de tensão entre o país "adotivo" onde vivem e a fantasia de seus pais de uma volta que, muitas vezes, nunca se concretiza.

Aprendizado eterno

Diversos aspectos do processo migratório vão sendo analisados: do medo da perseguição à esperança de uma vida economicamente estável, da migração como forma de protesto até seu caráter como expressão de um aprendizado eterno.

Em qualquer caso, porém, a migração é vista como um processo que provoca mudanças de conceitos e valores e, muitas vezes, até força os indivíduos a mudarem a grafia do próprio nome. Contextos que desestabilizam o que se costuma chamar de "identidade" e fragmentam a percepção do migrante em relação ao espaço. Pois nunca se está num lugar "por completo".

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De sujeito a objeto

Em primeiro plano, porém, o Projeto Migração questiona o conceito do Outro como aquele que, através do mero ato de cruzar uma fronteira, passa a ser considerado diferente ou estranho. Deixando de ser sujeito para ser objeto, passível ou não de "integração".

A solução para que se possa escrever de forma coerente a história européia, apontam os teóricos, é deixar de insistir num "eu" europeu que difere de "outros". Evitando reproduzir uma narrativa que coloca uma maioria no papel de protagonista, frente a minorias condenadas a eternas coadjuvantes. Ativando em vez disso a memória cultural e fazendo com que os indivíduos encarem a migração como parte da própria biografia.

Medo substituto

As arestas existentes no dia-a-dia de todas as sociedades da Europa Ocidental – explicitadas nos atuais conflitos na França – certamente só serão aparadas se for possível desmascarar as formas através das quais são construídas as identidades culturais no continente.

Ou seja, se for demolido o discurso que prega a existência de comunidades homogêneas, cujo ponto comum é simplesmente diferir "dos outros". Um discurso do "ou-nós-ou-eles", que exclui em sua essência o migrante.

Projekt Migration
Coreanos aprendem alemão na Associação das Minas de Carvão de Eschweiler, Alsdorf, 1965Foto: presse

Em uma das análises mais lúcidas publicadas no catálogo do Projeto Migração, o filósofo francês Étienne Balibar traça um paralelo entre a idéia do inimigo "do outro lado da Cortina de Ferro" – uma idéia construída durante as décadas de Guerra Fria – e o medo do "Outro entre nós", surgido após a queda do Muro de Berlim. Este "novo medo", segundo Balibar, faz com que a Europa feche suas portas – vide Gibraltar, Sicília ou Creta.

Estrangeiros para nós mesmos

Esquecendo, como assinala Julia Kristeva (filósofa búlgara radicada na França), em Estrangeiros Para Nós Mesmos (Ed. Rocco), que "o estrangeiro está em nós. E quando fugimos ou combatemos esse estrangeiro, lutamos contra o nosso inconsciente – este 'impróprio' do nosso 'próprio' impossível".