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"Agostinho Neto foi o grande comandante da repressão"

23 de maio de 2017

Segundo o historiador Carlos Pacheco, o primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, foi o principal responsável pela chacina que se seguiu à tentativa de golpe de Estado em 27 de maio de 1977. "Foi o apocalipse", diz.

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Foto: picture-alliance/dpa

Há 40 anos, Angola viveu uma das facetas mais sangrentas da sua história, marcada pelos acontecimentos do 27 de maio de 1977. Não há números oficiais, mas sabe-se que milhares de angolanos foram torturados e assassinados sem julgamento.

O historiador angolano Carlos Pacheco fala em genocídio. E não tem dúvidas que Agostinho Neto, "uma figura cheia de sombras", teve um papel preponderante nos massacres a seguir ao 27 de maio, após a tentativa de golpe de Estado por um grupo classificado como "fraccionista", encabeçado por Nito Alves, então ministro da Administração Interna e membro do Comité Central do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

"O papel de Agostinho Neto foi total", afirma Carlos Pacheco. "Colhi algumas versões, até da própria viúva [Maria Eugénia Neto], de que um determinado grupo liderado pelo Lúcio Lara tentara sempre e conseguira isolar Agostinho Neto no Futungo de Belas [palácio presidencial]", conta.

Carlos Pacheco angolanische Historiker
Carlos Pacheco: "O papel de Agostinho Neto foi total"Foto: DW/J. Carlos

Depois de recolhidas novas provas, o investigador chegou depois à conclusão que "Agostinho Neto, de facto, foi o primeiro responsável de todos os acontecimentos, das ordens para perseguir, liquidar. Ele esteve sempre no centro, ele foi o grande comandante da repressão".

Carlos Pacheco cita ainda fontes, como o já falecido médico Luís Bernardino, amigo pessoal de Agostinho Neto, que contrariam a ideia de que "as matanças foram da autoria de grupos comandados". Lamentavelmente, acrescenta o historiador, "há quem ainda defenda esta versão".

Purgas internas

As depurações internas foram contínuas ao longo do período da luta armada, afirma o investigador. Desde sempre houve antecedentes, direta ou indiretamente, de perseguição de militantes dentro do MPLA. Foi o que aconteceu a Matias Miguéis, então vice-presidente do partido, que abandonou o MPLA por dissidência.

"Bastava alguém não estar de acordo com Neto ou por vezes contar uma anedota sobre ele", sublinha Pacheco, lembrando o que aconteceu na antiga União Soviética. "Bastava alguém fazer um comentário que não respeitasse o grande chefe, o colosso, para imediatamente a pessoa sofrer represálias".

"Agostinho Neto foi o grande comandante da repressão"

Mais tarde surgiu a Frente Leste, grupo de guerrilheiros do MPLA da Quinta Região, também reprimidos por não concordarem com a política da ala de Neto.

"Diz-se que houve uma rebelião na Quinta Região e que aqueles comandantes foram trucidados, porque estavam envolvidos nessa rebelião - cujo desígnio era assassinar Neto", explica o autor do livro "Agostinho Neto. O Perfil de um Ditador - A História em Carne Viva", que lhe valeu uma queixa na justiça portuguesa por parte da Fundação Agostinho Neto.

De acordo com Carlos Pacheco, essa foi a versão foi disseminada internamente e também no exterior. "Acusou-se aqueles comandantes de quererem matar Agostinho Neto e que o chefe, o autor ideológico dos revoltosos, seria o [Daniel] Chipenda. Tanto é que o próprio Chipenda esteve na eminência de ser liquidado", lembra.

"Quando três comandantes, entre os quais Iko Carreira, se apresentaram no hospital de Lusaka - onde Chipenda estava em tratamento porque se encontrava bastante fragilizado de saúde - o objetivo era retirá-lo dali à força e levá-lo para uma base e matá-lo por ordem do Neto", conta o historidador. Segundo Carlos Pacheco, o que salvou Daniel Chipenda foi o segurança que Kenneth Kaunda, então Presidente da República da Zâmbia, disponibilizou para o proteger.

Apoio da União Soviética

A União Soviética "não nutria grande simpatia" pelo Presidente angolano, que via como "um péssimo líder, que não se impunha por si próprio, apenas pela força", afirma o historidaor.

Ainda assim, explica, "foi o país que mais doações fez ao MPLA, não só de logística, material de guerra, suprimentos alimentares, mas sobretudo material de guerra e recursos financeiros".

Carlos Pacheco angolanische Historiker
Carlos Pacheco: "Não podia haver mais ninguém acima de Agostinho Neto"Foto: DW/J. Carlos

Até que em 1967/1968 surge "um grande mal estar porque se descobre que os recursos financeiros do MPLA estavam a ser dilapidados com viagens escusadas não só de membros do Comité Central como pelo próprio Neto. E isso desagradou muito aos soviéticos", relata Carlos Pacheco.

Mantiveram os fornecimentos de armamento, mas interromperam as doações financeiras. "Os soviéticos desconfiavam muito do Neto", sublinha.

"Construiu-se uma lenda"

Como se explica que, ainda hoje, Agostinho Neto seja venerado em Angola? "Construiu-se uma lenda", responde Pacheco. "Não foi construída só pelo MPLA e o mundo impressionou-se exatamente com os fetiches que a máquina de propaganda ia criando", diz, acrescentando que a lenda foi construída no estrangeiro pelos movimentos que apoiavam o MPLA, as várias associações, grupos políticos e profissionais de advogados.

O perfil que o historiador traça de Neto no seu último livro é de um ditador, que se colocava acima da própria estrutura partidária. "Não podia haver mais ninguém acima dele. O coletivo é que lhe devia obediência".

Uma lenda que, acredita Carlos Pacheco, vai manter-se por muito tempo, porque milhões de pessoas acreditam nesta ficção. E esse sentimento de idolatria não se remove em pouco tempo. "Só com o tempo, com gerações mais ilustradas e mais cultas. Eu já não estarei cá para ver isto", conclui.