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"É importante fazer correção histórica sobre junho de 2013"

1 de junho de 2023

Autor do livro "A Razão dos Centavos", o urbanista Roberto Andrés nega a ideia de que os protestos que abalaram o país há 10 anos tenham sido o germe responsável pela ascensão da extrema direita na política nacional.

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Manifestação na Praça da Sé, São Paulo, em 18 de junho de 2013
Manifestação na Praça da Sé, São Paulo, em 18 de junho de 2013Foto: Reuters

Era um outro país aquele de junho de 2013. A petista Dilma Rousseff, presidente, enfrentava alta rejeição popular e, ao mesmo tempo, se preocupava com as obras para a Copa do Mundo, que o Brasil receberia no ano seguinte. O julgamento do Mensalão, escândalo de corrupção que abalou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, acirrava os discursos antissistema. E manifestações em todas as grandes cidades passaram a reivindicar uma demanda que parecia utópica: a gratuidade nos transportes públicos.

Esse caldeirão fez com que a nação mergulhasse em um cenário de protestos constantes, nem sempre com pauta compreensível. Para muitos, ali estava o ovo da serpente que faria germinar o bolsonarismo. Não é o que diz o urbanista, ensaísta e ativista Roberto Andrés, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que lançou nesta semana o livro A Razão dos Centavos.

"Basta olhar as pesquisas. Quem ganhou intenção de voto após as revoltas de junho não foi [o pré-candidato do PSDB] Aécio Neves, mas [a então ex-senadora] Marina Silva e o [juiz responsável pelo caso do Mensalão] Joaquim Barbosa, alternativas de centro-esquerda e de centro, progressistas que renovavam o repertório depois do PT, mas não eram de um movimento que levava para a extrema-direita", afirma ele. "O Brasil faz uma espécie de achatamento da história, com o apagamento de certas partes, gerando conexões entre coisas que não são conectadas."

Observador do fenômeno da crise das cidades, Andrés vê como legado daquele movimento a importância de trazer para a pauta a ideia da tarifa zero, antes irrealista, agora mais factível. "Em junho de 2013, eram pouco mais de 10 cidades que praticavam, atendendo a 300 mil pessoas. Hoje são 70 cidades, 3 milhões de pessoas”, enumera.

DW Brasil: No livro, você ressalta que as revoltas de 2013 resultaram de linhas históricas distintas que se juntaram e formaram um híbrido novo, "a convergência de afluentes tão díspares formou o rio revolto e incompreendido de junho”. Como foi possível que esses clamores se unissem?

Roberto Andrés: As revoltas de 2013 foram um evento político único na história brasileira. Elas foram a confluência de ciclos de luta que raramente coincidem no mesmo lugar e no mesmo tempo. O primeiro […] é o de revoltas por transporte no Brasil, um assunto pouco conhecido, o que também é sintomático. Motins, quebra-quebra pelo transporte remetem ao império, o primeiro ocorreu no Rio de Janeiro [a Revolta do Vintém, de 1879 a 1880]. O transporte no país nunca foi levado a sério como serviço público. 

Outro movimento que vinha ascendendo eram os movimentos de luta por formas de vida, lutas que estão na fronteira da economia capitalista com suas condições de fundo. A luta por direito à cidade cresceu muito no Brasil a partir de 2010, a luta por espaços públicos, por praças, por ciclovias, por não derrubarem árvores, por preservarem rios. Esse ciclo tem a ver com o fortalecimento progressista de uma nova geração […] e se intensifica pela questão da Copa do Mundo [que seria sediada pelo Brasil em 2014], em que houve uma grande remoção de direitos das comunidades maios pobres.

Depois há ainda o ciclo de movimentos contra a corrupção, algo que se inicia ali no final do segundo governo Lula e se intensifica com o julgamento do Mensalão [entre 2012 e 2014].

Desde 2011 foram muitos protestos no país contra a corrupção, todo um movimento nesse sentido, com atores de centro, independentes politicamente como a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] que convocavam para protestos como este, com grupos mais à direita, mas ainda uma coisa híbrida. Essa confluência faz com que as revoltas de junho acabem se tornando o terceiro grande conjunto de manifestações desde a redemocratização do país, depois das Diretas Já e das passeatas contra [Fernando] Collor [que renunciou em 1992 após sofrer processo de impeachment].

Essa confluência fez com que as coisas ficassem muito diversas e muito difíceis de serem compreendidas. E o que permitiu que isso acontecesse foi justamente o método dos grupos que convocavam, […] com práticas mais próximas do autonomismo, de não ter palanque, de não ter discurso e não ter bandeiras, de não ter lideranças explícitas. Isso tornou a manifestação mais permeável para a disputa.

Podemos dizer que a ascensão da extrema-direita, com a eleição de Jair Bolsonaro cinco anos depois, foi consequência dos protestos de junho de 2013?

Essa visão carece de sentido e não é aplicada em outros países. Houve um ciclo muito parecido internacionalmente no período, após a crise de 2008, com uma resposta progressista em movimentações mundo afora, as ondas do Occupy [surgido em 2011 nos Estados Unidos], o 15-M na Espanha, mobilizações na Tunísia, na Islândia e também na América Latina, como no Chile.

Há toda uma onda de mobilizações progressistas e de demandas sociais da qual junho de 2013 fez parte. Uma onda antissistema, que absorvia demandas e também crítica à esquerda tradicional. E o que aconteceu depois foi que os problemas reivindicados para serem resolvidos permaneceram, não foram resolvidos. E na segunda metade da década surgiram os populistas autoritários que passaram a endereçar esses problemas com falsas soluções. Isso aconteceu nos Estados Unidos, aconteceu no Brasil, estamos vendo na Espanha, no Chile, autoritários ainda com espaço, conseguindo avançar em suas agendas.

Mas o Brasil é o único lugar que culpa ou que coloca a segunda parte do processo como consequência da primeira. Ninguém nos Estados Unidos diz que o [ex-presidente Donald] Trump foi eleito por causa do Occupy Wall Street, ninguém. Isso não acontece na Espanha ou no Chile. No Brasil, de alguma maneira, a gente preferiu ignorar que a [socióloga e política de esquerda) Marielle Franco  estava nas ruas em 2013, que o [político de esquerda] Guilherme Boulos foi uma liderança naquele momento, entre tantas outras pessoas.

Aquele ciclo foi majoritariamente progressista, embora tenha aberto espaço para ser disputado por alguns atores da direita. Quem viria a se beneficiar das manifestações de 2013 não foi [o então deputado federal] Jair Bolsonaro ou [o pastor e também deputado] Marco Feliciano. Basta olhar as pesquisas. Quem ganhou intenção de voto após as revoltas de junho não foi [o pré-candidato do PSDB] Aécio Neves, mas Marina Silva e o [juiz responsável pelo caso do Mensalão] Joaquim Barbosa, alternativas de centro-esquerda e de centro, progressistas que renovavam o repertório depois do PT, mas não eram de um movimento que levava para a extrema-direita. É importante fazer essa correção histórica.

O Brasil faz uma espécie de achatamento da história, com o apagamento de certas partes, gerando conexões entre coisas que não são conectadas. Marina Silva se beneficiou politicamente das revoltas de junho e acabou simbolizando mais o que aquele tipo de manifestante buscava. Mas ela foi esmagada nas eleições de 2014 e depois o país entrou em um tipo de polarização muito acirrada entre direita e esquerda, abrindo um novo ciclo, com o protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, o surgimento do MBL [Movimento Brasil Livre, de direita], do [movimento] Vem Pra Rua. Isso tudo surge depois de 2014, é importante dizer porque está havendo esse atalho, essa simplificação da história que gera distorções em nossa percepção histórica dos eventos.

A eleição de 2014, que reelegeria Dilma Rousseff, ocorreu ainda sob o impacto dos protestos de 2013. E a petista venceu em disputa acirrada com o tucano Aécio Neves. O fato de parte da população não ter aceitado o resultado daquelas eleição tem ligação com a manifestações?

Pelas pesquisas de 2013, com o perfil demográfico, social e etário dos manifestantes, a Marina Silva era a alternativa que melhor representava aquelas demandas. Essa alternativa foi esmagada [durante o processo eleitoral. Tanto Dilma quanto Aécio levaram aquela eleição para a construção de um acirramento ideológico entre direita e esquerda. Isso mudou a chave do debate político. 

Quando o PSDB não aceitou o resultado as urnas e o MBL chamou suas manifestações, a partir de novembro de 2014, comparando quem estava nesses protestos e quem estava em 2013, vemos um perfil completamente diferente. Antes eram jovens que rejeitavam os partidos políticos, com presença significativa de camadas intermediárias, quem ganha de 2 a 5 salários mínimos, sem rejeição específica por um partido ou outro.

A partir de 2014, apareceu ali um manifestante mais velho, mais branco, mais rico — um perfil de classe mais alta, com preferência majoritária pelo PSDB, não antissistema, sem rejeitar o sistema político e passando a veicular uma mensagem extremamente crítica ao PT. Fiz uma análise de mais de 6 mil cartazes para mostrar isso, que também é possível de ver nas pesquisas de opinião [da época]. É um perfil diferente.

Transporte com tarifa zero é uma possibilidade ou uma utopia?

Era uma utopia no Brasil quando os manifestantes de junho de 2013 começaram a colocar suas faixas e cartazes. Parecia completamente irrealista. Muitas vezes ciclos de manifestações não produzem mudanças imediatas […] mas têm o papel de mudar o senso comum sobre o tema, colocar na agenda. Tarifa zero era irrealista e foi pouco a pouco se disseminando no conjunto social. Em junho de 2013, eram pouco mais de 10 cidades que praticavam, atendendo a 300 mil pessoas. Hoje são 70 cidades, 3 milhões de pessoas. Hoje se debate a sério em São Paulo, por um prefeito bolsonarista [Ricardo Nunes, do MDB], a tarifa zero. É uma pauta que tem avançado muito.