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Às gargalhadas, rumo ao apocalipse

Robert Schurz / av12 de janeiro de 2003

Dá para rir, mas também para chorar, com o baixo nível das piadas que povoam a TV alemã. Seja como for, fica a questão: por que nossa vida ficou tão engraçada?

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A cara do humorismo alemão? (Kaya Yanar – "Was guckst du?!")Foto: SAT.1

Nos últimos 15 anos, o número de shows de humorismo na televisão da Alemanha cresceu oito vezes. Após o sucesso de Samstag Nacht (Sábado à noite), no canal comercial RTL, começou a brotar um programa de comedy (no jargão da TV) atrás do outro. Como só o que dá audiência é transmitido, não faz sentido condenar a mídia por sua programação. Seria antes o caso de criticar a sociedade que faz tal escolha, e, por tabela, aquilo que o Humanismo chamava de "os baixos instintos humanos", dos quais um exemplo é o maligno prazer com o sofrimento alheio.

Sintoma de náusea

Há um sem-número de explicações possíveis para essa onda. Todas convergem num ponto: esse alastramento do cômico é um sintoma de náusea, de mal-estar cultural. Os sociólogos cunharam o conceito de "sociedade das sensações" como um sinal do pós-modernismo: como a civilização esvazia de sentido a vida humana, a sensação, o "evento" são as únicas metas desejáveis. Por definição, o evento só fornece um breve estímulo; em termos de humorismo, a hegemonia da piada escrachada, que prescinde de reflexão.

Tal a lógica da decadência: para ainda surtir efeito, ou os estímulos se tornam mais fortes, ou têm que ser mais freqüentes. No momento presenciamos o emprego de ambos os recursos. Só que essa lógica pode explicar o boom do entretenimento em geral, mas não a expansão do humorismo televisivo nos últimos 15 anos. Neste caso, a justificativa possível seria a necessidade de recalcar as catástrofes iminentes do mundo globalizado. Sim, é possível dessensibilizar-se frente a estas ameaças: com a ajuda da comedy.

Império do cinismo

Harald Schmidt
Harald SchmidtFoto: AP

Com efeito: a brutalidade é uma marca registrada da nova onda humorística. O sarcasmo do apresentador superstar Harald Schmidt tem como alvo preferencial todo tipo de indignação moral, assim como o engajamento resultante. Sua mensagem central é: somos todos escravos de nossos desejos e vaidades, pouco sentido faz tentar melhorar qualquer coisa.

Porém, nesse gesto de desmascaramento, onde está a fronteira entre esclarecer e simplesmente ridicularizar? Tomemos o exemplo do videoclip Maschendrahtzaun (O alambrado), do rei do humor televisivo grosso, Stefan Raab. Ele se baseia num caso real: a luta escarnecida de duas vizinhas do leste alemão em torno de uma cerca de arame trançado. Sua repercussão foi tamanha que uma das protagonistas foi totalmente incorporada pela mídia, tornando-se diva pop à revelia.

Na origem, o clip continha, sem dúvida, um elemento esclarecedor, ao revelar como uma mesquinha arenga entre vizinhos pode se tornar missão de vida. Só que a ênfase deslocou-se para a figura de uma mulher ingênua, que afinal foi explorada pela máquina midiática e ridicularizada. O aspecto de esclarecimento passou para um plano extremamente secundário.

Irresponsabilidade global

"A dificuldade é que tudo é permitido", reclama o autor de sketches Matthias Täfrich, "há 50 anos havia tabus com que podíamos brincar". Seria de imaginar que, sem o atrativo da quebra do tabu, também diminuiria o gosto pela comédia. Na prática, ocorre o contrário: as tiradas de mau gosto, que não provocam mais ninguém, são repetidas sem cessar. É o próprio ser humano que abdica de todo o respeito por si, e o fatal "outro lado da moeda" é a irresponsabilidade universal. Ao se fazer de imbecil, o ser humano tem a esperança de se libertar de todo tipo de responsabilidade.

"Por um momento, o pensamento é remetido ao nível infantil, para poder recuperar a fonte de prazer da infância", afirma Sigmund Freud em O chiste e sua relação com o inconsciente. Para o pai da psicanálise, o humor é um "tipo infantil" de raciocínio, em sua teoria a piada conteria uma forma infantil de processamento da realidade, que produz um efeito cômico sobre os adultos.

Segundo Freud, a criança ri ou por sentimento de superioridade ou por malignidade: "Você caiu, não eu!". Sob condições idênticas, o adulto experimenta um sentimento de comicidade. Assim, o engraçado nada mais seria do que o recalque de emoções primitivas. Tal ponto de vista lança uma nova luz sobre o boom humorístico, o qual se alimenta da gigantesca infantilização de nossa sociedade.

Agressão e frieza emocional

Assim, o presente sucesso da comedy fundamenta-se em dois fatores: por um lado, a tendência à dependência e infantilidade, por outro, uma agressividade crescente. Esta, por sua vez, nasce de uma recusa de qualquer envolvimento, num sistemático exercício de frieza emocional que só a comicidade permite. Ambos os aspectos estão relacionados, pois o adulto infantilizado é um tipo humano de agressividade não questionada, a quem quase nada atinge.

Talvez a infantilização da sociedade e a conseqüente onda de humorismo sejam apenas sintomas passageiros, e deixaremos de ser criancinhas no momento em que a situação ficar realmente séria. Mas pode ser que nem venhamos a nos dar conta, quando este ponto chegar. Exatamente como uma criança, incapaz de reconhecer que a brincadeira acabou.