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27 de maio de 2011A relação que temos com uma obra de arte é quase sempre uma experiência individual e de distanciamento. Como espectadores nosso papel é claro quando vemos o quadro pendurado na parede, o filme projetado na tela ou atores em cima de um palco. O espetáculo You Are Here do cenógrafo e diretor holandês Dries Verhoeven tenta inverter essa relação de distanciamento ao mesmo tempo em que questiona a individualidade e o coletivo nas grandes cidades, onde vivemos muitas vezes sozinhos e simultaneamente em distancias físicas cada vez menores.
O diretor mostra de maneira inusitada o que chama de teatro instalação, onde a ação é construída em cima de impressões, tendo o público não só como espectador, mas também como parte essencial da narrativa. "Teatro é uma arte viva e difere das outras artes porque é criada no momento que olhamos para ela. Damos as ferramentas para a plateia testemunhar o que está acontecendo no palco. Muitas vezes essa relação me deixa entediado. Acho que me interesso mais pela plateia do que pelos atores no palco", declarou Verhoeven à Deutsche Welle.
Sozinho no seu quarto
Toda a experiência de You Are Here difere do teatro comum. Ao invés da bilheteria, temos uma recepção. Bolsas, jaquetas e sapatos são trocados por uma chave e então cada pessoa é dirigida ao seu próprio quarto. Não fazemos parte mais de um grupo. Deitados na cama, o espelho no teto dos pequenos quartos nos faz espectadores da nossa própria solidão.
Para o diretor, o espetáculo é como "uma ferramenta para olharmos nossa própria vida de maneira diferente". Tudo que ouvimos é uma música de fundo e alguns ruídos. O contato começa a acontecer através de um questionário que preenchemos e devolvemos por debaixo da porta.
Quando a música dá lugar a uma narrativa cotidiana e peculiar, algo como um fluxo de pensamento, começamos a ser transportados para outro lugar sem sairmos do conforto de nossas camas. "Eu uso muito o Google Earth e um dia pensei como seria observar a minha vida e a vida dos meus vizinhos se eu pudesse dar um zoom out na área que eu vivo em Amsterdam", e é exatamente isso que o diretor cria.
O teto de espelho dos quartos começa a subir, revelando aos poucos o que os meus vizinhos estão fazendo. Fisicamente ainda estamos sozinhos em nosso pequeno quarto, mas observamos e somos observados. Nossa existência faz parte de um sistema maior e que envolve outras pessoas.
"Percebi que estou fisicamente muito perto de pessoas que não conheço. É muito estranho que vivamos em um mundo onde não precisamos nos conectar com as pessoas que vivem ao nosso lado. Queria criar algo como uma maquete de uma cidade grande e mostrar a relação com os estranhos que vivem ao nosso lado", complementou o diretor.
A vida como um filme
A partir desse ponto, expandimos nossa relação com o coletivo, mas de uma maneira distante. Somos o criador e a criatura olhando a própria imagem no espelho. Com a liberdade física restringida, mas com essa janela para uma visão mais ampla do que está ao nosso redor o diretor começa a sua narrativa. Essa onipresença nos torna espectador de um filme onde somos um dos personagens. O fluxo de consciência volta aos alto-falantes, mas dessa vez a narrativa é construída com fragmentos de nossa vida e das pessoas ao nosso redor.
O pensamento se materializa em um corpo e uma voz, que temos que procurar no labirinto que observamos e do qual fazemos parte. Nesse ponto também questionamos quem é ator e quem é espectador. Em quem devemos ou não confiar, observar e interagir. Para Verhoeven, não há nada de errado em escolher ser sozinho. "Queria discutir a relação entre o indivíduo e o que lhe cerca, sem dar a minha opinião. Mas também acredito que estar em contato com pessoas que não fazem parte do seu círculo pode ser revigorante para a reflexão como ser humano."
As luzes passam a controlar onde direcionamos nossa atenção. Quando tudo se apaga, estamos sozinhos no espaço. A escolha do gasômetro de Schöneberg para a montagem do espetáculo acentua ainda mais essa sensação. Quando voltamos ao coletivo, estamos dentro de um sonho, que aterroriza e conforta ao mesmo tempo. Quando somos tirados um a um de nossa individualidade, voltamos para o coletivo por alguns momentos de uma forma quase religiosa, uma mistura de mistério e conforto.
"O coletivo natural começou a desaparecer depois que a religião desapareceu da minha vida e da de um grande número de pessoas". Para os brasileiros a situação parece ainda mais irreal porque os atores estão cantando em coro a canção do folclore infantil Se Essa Rua em um português com sotaque.
Ao certo nos perdemos um pouco no tempo e no espaço, na escuridão de um labirinto onde estamos distantes e próximos dos outros e de nós mesmo refletidos no espelho. Verhoeven se mostra um humanista e antes do final do espetáculo não estamos mais solitários, mesmo estando sós. Alguém chama nosso nome na luz no fim do túnel.
"Alguns espectadores têm que se acostumar com a maneira honesta como o espetáculo se comunica com eles. Faço algumas perguntas. A resposta não importa, desde que sejam sinceros. Muitas pessoas acham o teatro uma mentira maior que a vida. De uma maneira eles não confiam em quem está representando. Uma vez na Áustria uma espectadora ficou muito irritada e começou a gritar: 'Sr. Diretor, isso é teatro ou terapia?' No final da peça, acho que ela entendeu que não temos nada a esconder", completou o diretor. A verdade é como uma escolha que nos é dada pelo espetáculo, que sem perguntar acaba se tornando, se não maior que a vida, maior que a nossa própria individualidade.
Autor: Marco Sanchez
Revisão: Roselaine Wandscheer