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Uma peça musical dura 639 anos

Augusto Valente10 de abril de 2003

De um lado, um revolucionário e bem-sucedido compositor norte-americano. De outro, uma igreja medieval, ex-chiqueiro, no leste alemão, e seu órgão que ainda não existe. Ambos unidos na música mais longa da história.

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A Igreja de São Burchardo, em HalberstadtFoto: Ingun Arnold

Halberstadt já pertenceu aos peregrinos. A Igreja de São Burchardo foi parte do caminho místico de Santiago de Compostela e possuiu o primeiro moderno órgão de igreja da Europa. Desde a época napoleônica, porém, a casa de culto foi rebaixada a cervejaria, cabana de ferramentas e, por fim, a pocilga.

O subtítulo de uma obra musical e uma questão filosófica devolveram à peregrinação, desde o ano passado, a pequena e empobrecida cidadezinha em meio às montanhas do Harz, no leste alemão. "Quão lento é 'tão lento quanto possível'?", perguntaram-se em 1997 os participantes de um seminário de música nova para órgão em Trossingen, na Suábia. A suscitar esse questionamento, a obra Organ2/ASLSP, de John Cage (1912-1992), cujo título alternativo significa "As SLow aS Possible".

Ou tudo ou nada

John Cage Portrait
John Cage (1912-1992)Foto: AP

"Que tal 29 minutos, tanto quanto durou a estréia da obra pelo organista Gerd Zacher, em 1987? Ou a vida inteira do intérprete? Ou o tempo que agüente o mecanismo do robusto instrumento?" Tudo meias soluções profanas, rebateram os acólitos do guru da música conceitual: a rigor, Organ2 deve durar toda a eternidade. Ou um pouco mais.

Portanto, mãos à obra, disseram, a execução definitiva da obra começará na virada do milênio. Por intricados caminhos musical-esotéricos, os pais da idéia chegaram a um local – Halberstadt – e a um número – 639. A explicação: o legendário órgão de São Burchardo foi inaugurado em 1361, ou seja, a 639 anos do ano 2000, portanto a interpretação de Organ2 deveria durar este mesmo espaço de tempo.

O fato de a igreja não mais possuir um grande órgão era um mero detalhe: começa-se como for possível, pois o projeto, orçado em 500 mil euros, inclui uma campanha para a construção do instrumento necessário. Tempo é que não falta: a partitura de ASLSP começa com uma pausa, a qual, na escala de tempo adotada, leva cerca de 17 meses. A Fundação Organística John Cage, cujo diretor-gerente é o construtor de túneis Michael Bentzle, de 59 anos de idade, arca com a empreitada.

O empreendimento está aberto a todos: por mil euros é possível comprar o patronato de um "ano-som", à escolha do freguês. Até agora já foram vendidos doze anos, dos quais o mais distante é 2480. Para cumprir todas as formalidades, uma das tarefas de Bentzle foi encontrar uma seguradora "tão segura de si, que espere durar 639 anos" e um banco "que realmente confie no futuro".

Bayreuth da vanguarda

Cage Orgel in Halberstadt
O mecanismo do órgão de 'ASLSP'Foto: AP

A planejada estréia milenarista gorou, porém a magia numérica manteve-se. Na noite de 4 de setembro de 2001, às 9 h 36 min (atente-se para a permutação dos algarismos) foram ligados os foles de um pequeno positivo; após um ano e meio vieram as três primeiras notas – sol sustenido, si, sol sustenido agudo. Desde então elas soam ininterruptamente – as teclas são mantidas abaixadas por pequenos sacos de areia –, incomodando alguns moradores mais sensíveis. A entrada de um mi grave e um agudo, em 5 de julho de 2004, será um grande acontecimento. Para provável desespero dos vizinhos, daqui a uns 200 anos haverá um longo período de monumental e cacofônico fortíssimo.

ASLSP

promete transformar-se numa pequena indústria: seus participantes viajam incansavelmente para dar seminários sobre o projeto, na própria terra do profeta provocador. Se tudo der certo, até a sonolenta ex-Alemanha comunista lucrará com essa ousada iniciativa: à espera das legiões de "cagemaníacos", os hotéis locais prometem descontos para os turistas da música nova. Em algumas décadas, Halberstadt poderá estar para Cage assim como Bayreuth para Richard Wagner.

Só o que não faz sentido perdura

Em tempo: ao lado do aspecto de marketing e do que possui de visionário e até bizarro, o projeto ASLSP é um protesto contra o andamento vertiginoso da vida moderna. Como explica Bentzle, é preciso ultrapassar o aqui e agora: "A catedral, a igreja da cidade, todas foram projetos para gerações, projetos insensatos. Eles são os únicos que sobreviveram. Tudo o que é de acordo com a razão está há muito tempo destruído".

Organ2/ASLSP

vai até 4 de setembro de 2640.