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"Temo espiral de guerra após ataque a Bolsonaro"

9 de setembro de 2018

Em entrevista, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos comenta atentado sofrido por candidato à Presidência, polarização da sociedade e ameaças à democracia brasileira. "Estou preocupado com clima de violência."

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Jair Bolsonaro
"Espero que, a partir de agora, Bolsonaro tenha mais cuidado com suas falas", diz sociólogoFoto: Reuters/P. Whitaker

Após o recente ataque a faca contra o candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL), o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, de 77 anos, manifesta preocupação com a polarização da sociedade brasileira.

"O ataque à integridade física de um candidato é algo particularmente alarmante. Não só em si mesmo, mas também porque pode desencadear outros atos de violência, até de maior gravidade, em relação a outros candidatos", afirma.

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Em entrevista à DW, o professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) detalha as ameaças que observa ao funcionamento das instituições democráticas no país – da politização da Justiça à pressão do capital financeiro.

DW Brasil: Como o senhor reagiu à notícia do atentado contra Bolsonaro?

Boaventura de Sousa Santos: Com muita indignação, uma vez que alertei recentemente para os perigos de uma polarização descontrolada na sociedade brasileira. Cria-se um clima de ódio que torna impossível uma discussão serena dos argumentos. É algo que tem aumentado, e vejo isso com muita preocupação. O ataque à integridade física de um candidato é algo particularmente alarmante. Não só em si mesmo, porque esse tipo de ação não tem lugar na democracia e deve ser inequivocamente repudiada. Mas também porque pode desencadear outros atos de violência, até de maior gravidade, em relação a outros candidatos.

Está registrado que esses fenômenos costumam ter sequelas, o que é perigoso para a democracia brasileira, em um momento de tanta fragilidade. Devido à miopia das elites políticas e judiciárias, o estresse das instituições foi elevado de tal maneira, que agora estão a mostrar dificuldade em reagir. Os demônios do populismo, da ação antidemocrática – seja pelo fascismo ou pela resposta violenta a ele – estão a ter um lugar que já não pensávamos ser possível no Brasil.

Alguns afirmam que Bolsonaro foi vítima de um ambiente que ele mesmo ajudou a construir. O senhor concorda com essa leitura?

Nenhum desatino de uma pessoa ou candidato, nesse caso, pode justificar um ato de ataque físico à sua integridade. Mas não restam dúvidas de que, se há alguém que tenha promovido o discurso de ódio e da violência nestas eleições, é justamente o Bolsonaro. Não pode ser aceitável que ele diga, publicamente, que é preciso metralhar os petistas, ou suas afirmações sexistas sobre os salários inferiores das mulheres. Isso é absolutamente repugnante e condenável. Vem numa trajetória que não é novidade, de um homem descontrolado, grosseiro e inculto.

Quem semeia ventos colhe tempestades. Ele foi o grande promotor do ódio e das soluções violentas e acaba por ser vítima desse discurso. Obviamente, espero que ele se recupere e, a partir de agora, tenha mais cuidado com suas falas. Sobretudo, que seus apoiadores também se contenham e não entrem numa espiral de guerra, como parece ser o mais provável. Estou muito preocupado, e espero que esse clima de violência fique por aqui.

O senhor vem criticando o que chama de politização da justiça e judicialização da política, fenômeno que estaria se replicando no Brasil. Como isso se dá?

Os Estados foram soberanos enquanto puderam se financiar pela tributação. A partir de 1980, cria-se uma grande corrente, à qual a própria esquerda social-democrata se vai render, de que a tributação é um prejuízo para a economia, e, portanto, os Estados deveriam se financiar nos mercados. Assim, deixam de ser soberanos, porque se tornam dependentes do capital financeiro e das agências de risco, que podem fazer aumentar a sua dívida de um dia para o outro, sem que nada aconteça na economia real. Todas as instituições estão sujeitas a uma pressão muito forte.

Boaventura de Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos: "Com polarização, cria-se um clima de ódio que torna impossível uma discussão serena dos argumentos"Foto: CC BY 3.0 BR

No nosso sistema, há três grandes órgãos de soberania. Os dois que são eleitos vão ser pressionados por meio da descaracterização do processo eleitoral, que faz com que Legislativo e Executivo sejam cada vez mais subservientes desse capital financeiro. Quando essa pressão não é suficiente, em vez de rupturas institucionais, aciona-se o Judiciário, único órgão que não é eleito, sobre o qual a intervenção deve ser feita de outra forma.

O Judiciário se tornou o grande porta-voz da propriedade privada, da liberalização do mercado, e passou a ser pressionado em todos os países nesse sentido. A formação nas faculdades de Direito, os cursos de especialização oferecidos nos EUA, tudo isso contribuiu para intensificar o conservadorismo de uma classe que já tinha essa natureza. Mas, muitas vezes, esse poder também foi pressionado pelas classes populares. No Brasil, até 2004, 2005, o STF [Supremo Tribunal Federal] foi um tribunal muito mais virado para o interesse delas. Depois, cresceu a pressão de cima, enquanto a de baixo era mínima. Os movimentos sociais estavam relativamente desarticulados, por pensarem ter um amigo no governo.

O senhor afirma que o poder econômico tem desafiado a sobrevivência da democracia e enxerga o caso brasileiro como um laboratório da intensificação desse processo. O que quer dizer com isso?

Os chamados países emergentes que formaram o Brics [nos anos 2000] não apresentavam uma alternativa ao capitalismo, mas ao domínio total do dólar e dos EUA na economia mundial. Evidentemente, essa iniciativa é extremamente perigosa para o domínio ocidental, hegemonizado totalmente pelos EUA neste momento, com colaboração da União Europeia. Era preciso neutralizar essa força, e, mundialmente, o Brasil passou a ser o laboratório onde esse processo podia ter lugar.

O Brasil era o país onde a desigualdade social era enorme, mas a democracia florescente permitia, de alguma maneira, um pluralismo forte. Logo, era uma democracia mais vulnerável a uma penetração desestabilizadora. Eu penso que essa penetração está a ter lugar. Os financiamentos internacionais da direita brasileira são conhecidos e documentados – os irmãos Koch, a rede Atlas, os financiamentos do Instituto Millenium e Mises. O Brasil tornou-se o melhor laboratório para testar a capacidade do capitalismo ocidental hegemonizado pelos EUA de se defender dos seus potenciais inimigos.

Acontece que as classes dominantes nem sempre têm a clarividência para saber dominar tal qual os seus próprios riscos. Eu penso que os partidos de direita ganhariam tranquilamente as eleições de 2018 se não tivesse havido o golpe. Tudo se posicionava para um certo desgaste do PT levar a uma vitória tranquila, limpa, sem a acrimônia social e política que vemos hoje. Aqui, forçaram a mão, no sentido de que era preciso alinhar este país com toda a lógica econômica dos EUA.

Agora, então, os partidos de direita não deverão ganhar?

As classes dominantes e os partidos de direita deste país têm feito tudo para confirmar a hegemonia do PT na esquerda, na medida em que o partido tem vindo a crescer nas suas bases, precisamente devido à violência com que a demonização do [ex-presidente] Luiz Inácio Lula da Silva foi feita, no Judiciário e em grandes meios de comunicação. Foi de tal ordem o excesso, que o transformaram num mártir, e os mártires não se questionam. Adoram-se, veneram-se, e, portanto, de alguma maneira, desaparecem os erros – que foram bastantes na gestão do PT, sobretudo na política de alianças e modelo de desenvolvimento equivocados, no meu entender.

O sacrifício do Lula foi exagerado, mas, apesar de tudo, penso que eles podem prevalecer. Os mercados querem assegurar, a todo custo, que não haja candidato de esquerda no segundo turno, porque já viram que o excesso tornou perigosa essa jogada. Portanto, têm que jogar tudo no primeiro turno. Para isso, têm que dar a ideia aos brasileiros de que não estão unidos: alguns a favor do Alckmin, e outros a favor do Bolsonaro. Desde já, dizem aos brasileiros que ele também é aceitável para os tais mercados, para que ambos os candidatos de direita possam ir ao segundo turno, e a decisão seja feita contra um deles. Eles podem ter soltado um demônio que talvez não quisessem, o Bolsonaro, mas agora o têm nas mãos.

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