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"Tchernihiv já vive um desastre humanitário"

Anastasia Shepeleva
1 de abril de 2022

Desde o início da guerra da Rússia contra a Ucrânia, a cidade de Tchernihiv tem sido constantemente bombardeada. Moradores contam como sobrevivem em meio aos ataques e à falta de água, alimentos, e eletricidade.

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Ruínas em Tchernihiv
Prédio destruído em TchernihivFoto: privat

Bombardeios 24 horas por dia, falta de alimentos e água, sem comunicação e esperança de evacuação − este é cotidiano da população de Tchernihiv, no norte da Ucrânia. A cidade está ameaçada de enfrentar o mesmo destino da Mariupol sitiada. Os residentes de Tchernihiv pedem ao mundo que não esqueça deles e que noticie sobre o que o Exército russo está fazendo a uma das cidades mais antigas da Ucrânia.

Avanço de tropas russas na Ucrânia

A DW entrevistou três moradores de Tchernihiv, cujos nomes foram alterados por razões de segurança. Eles descrevem o que estão vivenciando:

Olena: "Era como se aviões voassem diretamente sobre minha cabeça"

"Em 24 de fevereiro, o dia do ataque russo, eu estava em Kiev com meu namorado, mas voltei para Tchernihiv porque toda a minha família está lá. Esta é minha casa, minha cidade, que eu amo. Percebi que eu estava dirigindo diretamente em direção aos tanques russos. Eu chorei quase o tempo todo.

Quando cheguei e saí do carro, ouvi o bombardeio, que ficava cada vez mais alto. Logo na primeira noite tivemos de nos refugiar no porão do nosso prédio, as janelas tremiam.

Por não conseguir tomar a cidade, as tropas russas aterrorizavam Tchernihiv. Projéteis caíam constantemente perto de nossa casa. Eu só conseguia dormir de três a quatro horas. Mais tarde, nos mudamos completamente para o porão, porque não era mais possível ficar no apartamento. Por causa da tensão, eu ficava o tempo todo tremendo, mesmo nos poucos momentos de silêncio.

Em 1º de março, as tropas chegaram bem mais perto da cidade e os bombardeios se tornaram ainda mais intensos. Tínhamos medo de ir para fora. Apenas uma vez, mesmo sob os bombardeios, fui a uma loja e à farmácia.

Comemos os suprimentos que tínhamos. Levantávamos às 4 da manhã, porque nesse horário ainda estava tudo relativamente calmo. Cozinhávamos rapidamente: trigo sarraceno ou macarrão. Geralmente comíamos no porão por causa do alarme aéreo.

Nos últimos dias que passamos na cidade, dormimos no apartamento. O porão não podia mais ser trancado, e havia rumores de que os sabotadores russos poderiam usar civis como escudos. Eu dormia com uma faca de cozinha e uma lanterna no bolso. Já havia relatos de casos de estupro de mulheres em Kherson.

Mas também era insuportável ficar no apartamento. Os aviões de combate russos voavam muito baixo sobre nosso bairro. Ficamos no corredor, com almofadas na cabeça, mas mesmo assim o barulho era tão alto, como se os aviões voassem diretamente sobre minha cabeça. Esse sentimento de desamparo e pânico é terrível.

Nosso prédio fica na periferia da cidade, e eu sabia que estaríamos sob fogo se as tropas russas avançassem um pouco mais. O fornecimento de eletricidade e água foi interrompido. Então, felizmente, um amigo que está na Defesa Territorial conseguiu convencer minha mãe a fugir comigo.

Em 5 de março, logo após o toque de recolher, deixamos Tchernihiv, apesar de uma proibição por parte das autoridades locais e apesar de um alerta aéreo. Tive contato com voluntários que conheciam rotas de fuga mais ou menos seguras. Logo no dia seguinte, não teríamos mais podido seguir esse caminho.

Mesmo depois de muitos dias em um lugar mais ou menos seguro, o barulho dos aviões ainda está nos ouvidos de minha mãe. Nós duas reagimos a cada som. A primeira vez que ouvi uma sirene após a fuga, eu quis me esconder debaixo da cama. Entretanto, fiquei mais calma, mas a situação na Ucrânia e em Tchernihiv, onde ainda temos parentes que não querem partir, ainda nos preocupa.

Destruição em Tchernihiv
A destruição em TchernihivFoto: privat

Meu irmão e minha avó estão doentes porque estão sem aquecimento e a casa deles está muito fria. Eles economizam a bateria de seus telefones celulares e só os ligam por alguns minutos para entrar em contato conosco. A sensação de abandono e de não ter informações é muito deprimente para eles. Nós lhes contamos as notícias. Tento convencê-los a sair enquanto podem, porque Tchernihiv pode se tornar uma segunda Mariupol. Mas eles não querem ir embora. Dizem que as pessoas de alguma forma sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, e que também sobreviverão a esta guerra."

Dmytro: "Suspeito que já tenhamos mortes por fome"

No início da guerra, Dmytro estava em uma vila perto de Tchernihiv, onde os combates eclodiram rapidamente. Após dois dias escondido no porão, ele conseguiu fugir com a família para a cidade, que em tempos de paz tinha 285 mil habitantes. Ali, junto com amigos, Dmytro fundou uma iniciativa voluntária que fornece alimentos e remédios.

"A cada dia que passa, a situação na cidade fica mais difícil. As tropas russas destruíram metade da cidade − instalações esportivas, bibliotecas, escolas, monumentos e edifícios civis. Os aviões bombardeiam constantemente, como se tivessem um cronograma.

Cerca de 100 mil civis ainda estão na cidade, em sua maioria aposentados. Eles podem ser vistos nas ruas, embora seja perigoso caminhar pela cidade. Quem se adaptou à situação, leva cães para passear ou lê livros ao ar livre. Mas também há pessoas que não conseguem sair dos porões. Muitos têm problemas psicológicos, mas não há ajuda. Há também muitas pessoas acamadas.

A eletricidade e o aquecimento há muito tempo estão desligados e há muito pouca água. As pessoas coletam a água da chuva ou esvaziam radiadores do aquecimento. Há também grandes problemas com alimentos e comunicação, já que os celulares não podem ser carregados.

Na verdade, um desastre humanitário já começou há muito tempo em Tchernihiv. A cidade está completamente sitiada desde que as pontes foram explodidas. Algumas lojas estão abertas, mas as prateleiras estão vazias e os preços estão altos. No início, as pessoas ainda podiam comprar leite, carne, ovos, mas agora só anseiam por um pedaço de pão e um copo de água. Também recebemos muitos pedidos para ir a certos endereços para ver se os parentes ainda estão vivos.

Minha equipe compra tudo das lojas para que tenhamos algo em estoque. Há muitos relatos de pessoas que passam fome. Fico com lágrimas nos olhos quando leio esses pedidos de ajuda. Suspeito que já tenhamos mortes por fome. Felizmente, recentemente chegamos a um acordo com uma padaria que nos fornecerá mil pães por muito dinheiro. Penso que isso também será possível no futuro. Algumas farmácias ainda estão abertas, mas há grandes problemas com medicamentos.

Também recebemos solicitações para ajudar a cavar sepulturas. O cemitério está funcionando, e é possível enterrar as pessoas de forma civilizada. A extensão das baixas civis é difícil de estimar. Muitos mortos ainda estão sob os escombros.

Tchernihiv tem sorte com médicos. Apesar das condições difíceis, eles trabalham duro e realizam até mesmo cirurgias complicadas. Muitas pessoas que ainda estão na cidade entram em contato conosco para se informar como fugir. Mas a evacuação é impossível no momento."

Oleksandr: "A guerra é algo muito terrível"

"Em 24 de fevereiro, às 4h30 da manhã, soou uma sirene, ouvi duas explosões estrondosas e senti tremores. Pessoas com crianças e animais entraram em seus carros e saíram com poucos pertences. Mas nosso carro foi danificado pela onda de choque de uma explosão.

Destruição na Biblioteca Científica Universal Regional em Tchernihiv
A Biblioteca Científica Universal Regional foi danificada por um bombardeio em Tchernihiv no dia 30 de marçoFoto: Vladislav Savenok/AP/picture alliance

Centenas de carros faziam fila nos postos de combustíveis. Em geral, houve pânico na cidade durante os primeiros dias da guerra. Havia filas para alimentos, produtos de limpeza e todos os tipos de necessidades básicas como lanternas, telefones, carregadores portáteis para celulares.

No 34º dia da guerra, a maioria das pessoas havia deixado Tchernihiv. Não houve um corredor de fuga oficial. Todas as estradas arteriais estão sitiadas. Nenhuma ajuda humanitária está chegando. As conservas de alimentos e vegetais são agora a salvação.

Só há água potável em algumas partes da cidade. Ela é trazida e distribuída em caminhões-pipa, mas também há poços. Não há eletricidade, apenas através de geradores, mas estes são alimentados por combustível, que é escasso. O gás ainda está disponível, mas não em todos os lugares. As pessoas preparam seus alimentos nos quintais em lareiras. Por causa da falta de água, são cavados buracos para serem usados como banheiros.

As sirenes não funcionam na cidade há duas semanas, provavelmente por causa da falta de eletricidade. A periferia da cidade tem estado sob fogo constante de artilharia há duas semanas. Não consigo me lembrar de um dia em que não tenha havido uma explosão em Tchernihiv.

Quando o pânico inicial diminuiu, entrou-se em um modo de sobrevivência. Devido a uma deficiência, sou inapto para o serviço militar, por isso me tornei voluntário. Distribuo bens de primeira necessidade às pessoas. Com a ocupação, os dias passam mais rápido. Isso ajuda a manter a cabeça fria e evita a depressão.

A guerra é algo muito terrível. Esta frase pode soar banal, mas quem não sente a guerra na própria pele não sabe realmente como essa frase é verdadeira."