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Sob críticas, coração de D. Pedro 1º chega ao Brasil

22 de agosto de 2022

Governo Bolsonaro é acusado de instrumentalizar bicentenário da Independência e promover "espetáculo mórbido". Translado, cujos custos não foram revelados, evoca propaganda política da ditadura militar em 1972.

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Urna dourada com o coração de Dom Pedro I
Foto: Eraldo Peres/AP/picture alliance

Emblema das comemorações do bicentenário da Independência promovidas sob o governo Jair Bolsonaro, o coração de Dom Pedro 1º aterrissou em solo brasileiro na manhã desta segunda-feira (22/08) em clima pomposo, numa recepção que incluiu a exibição da bandeira do Brasil Império (1822-1889).

É a primeira vez em 187 anos que o coração deixa Portugal, onde é guardado a cinco chaves sob os cuidados da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa e da Câmara da cidade do Porto, para uma solenidade do outro lado do Atlântico.

Cinquenta anos atrás, em 1972, quando Brasil e Portugal viviam sob ditaduras, ação semelhante trouxe ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, os restos mortais do primeiro imperador brasileiro, onde a ossada repousa até hoje.

Intelectuais fazem paralelos entre os dois eventos e criticam o uso de recursos públicos para promover o que classificam como propaganda política.

"Não vejo muito sentido nisso em um momento em que mais de 30 milhões de brasileiros estão passando fome", afirma o jornalista Tiago Rogero, idealizador do Projeto Querino, podcast que narra episódios da história brasileira de uma perspectiva negra.

A crítica é endossada pela arqueóloga Valdirene Ambiel, autora de pesquisa pioneira sobre os restos mortais de D. Pedro 1º. "Entendo que o momento econômico do Brasil é delicadíssimo para um gasto de dinheiro público desnecessário", disse em pronunciamento via redes sociais.

Militar carrega urna dourada com o coração de Dom Pedro
O coração de D. Pedro 1º aterrissou em solo brasileiro em clima pomposo, com direito a honras militaresFoto: Eraldo Peres/AP/picture alliance

Custos não foram revelados

Pelo acordo firmado com as autoridades portuguesas, o governo brasileiro é quem arca com as despesas do empréstimo do coração do monarca português e primeiro imperador brasileiro. A jornalistas, contudo, o Itamaraty, que esteve à frente das tratativas para o traslado da relíquia, desconversou ao ser indagado sobre os custos da ação: sem revelar valores, alegou que são "absolutamente ínfimos".

A Força Aérea Brasileira (FAB) é responsável pelo traslado aéreo. A segurança do coração será supervisionada pelos portugueses e ficará a cargo das forças armadas e das polícias federal e militar.

Informação veiculada recentemente por Lauro Jardim no jornal O Globo, contudo, dá uma pista sobre a magnitude dos valores envolvidos: a FAB teria dito a Bolsonaro que os voos no avião presidencial durante a campanha eleitoral sairiam por R$ 120 o quilômetro – e mais de 7 mil quilômetros separam Brasília e Porto.

A isso somam-se as diárias dos agentes envolvidos na segurança do coração e os custos de recepção da delegação portuguesa.

"Espetáculo mórbido"

A historiadora e colunista da DW Brasil Ynaê Lopes Santos diz que o momento atual brasileiro é marcado por uma ampliação das perspectivas históricas sobre a Independência, com o reconhecimento de atores e perspectivas antes ignoradas. Por isso, para ela, a ação do governo não surpreende. 

"Ele [Bolsonaro] está trazendo o coração do herói que funda a nação", afirma. "É uma posição política achar que a história que importa é a dos grandes nomes que estiveram no comando da nação. Mas a Independência não aconteceu só por causa de D. Pedro", explica Lopes Santos.

Para ela, o apoio das autoridades portuguesas à empreitada brasileira é a reafirmação de uma perspectiva racista, onde os brasileiros devem a sua independência à benevolência de Portugal. "Focar só na perspectiva dele [D. Pedro] e silenciar outras é reforçar que a Independência foi feita de forma pacífica, harmoniosa. Isso é uma grande falácia."

Já para Tiago Rogero, a vinda do coração de D. Pedro 1º serve à uma construção nacionalista e ufanista da história. "Casa com esse momento que antecede o 7 de Setembro, que é uma celebração que ao mesmo tempo também soa como uma ameaça de ruptura democrática", afirma.

Avaliação semelhante é feita por Isabel Lustosa, biógrafa de D. Pedro 1º. Ela diz que por trás da movimentação está a tentativa do governo federal de faturar politicamente, dominando a agenda e instilando na população "um patriotismo fabricado" às vésperas da eleição e do 7 de Setembro –data icônica para os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e que, nos últimos anos, tem sido marcada por demonstrações de força de discursos golpistas.

Lustosa critica a falta de iniciativas do governo federal em memória do bicentenário. "Não tem um evento. Só resta fazer algum tipo de espetáculo em torno do pedaço do corpo de alguém que pediu para ser enterrado em Portugal", afirma. "É uma coisa quase mórbida. Não tem significado nenhum e não serve a ninguém."

O mesmo tom é seguido pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz. "Bem se vê como o governo não tem projeto, só tem fumaça", escreveu em uma rede social. "Mal sabia ele [D. Pedro 1º] que seu coração viraria bengala para um presidente autoritário, sem projeto."

Desrespeito ao patrimônio histórico

Para Lustosa, o traslado do órgão é um desrespeito à memória do monarca, que ainda em vida pediu para ter o corpo sepultado em Lisboa e o coração, embalsamado e enviado ao Porto.

"Acho que é quase uma violência, inclusive do ponto de vista do patrimônio histórico. Isso é patrimônio histórico português. Deveria ser preservado, e não ficar fazendo turismo mundo afora", lamenta a biógrafa.

Já Rogero diz esperar que o episódio incentive as pessoas a se informarem sobre a Independência para além da narrativa romantizada e usada ideologicamente por setores reacionários da sociedade brasileira.

"No mito oficial da Independência, o que se vê são homens brancos, em fardas militares, numa pose bem heroica. Mas quem de fato viveu os conflitos, inclusive armados, foi principalmente a parcela negra e pobre da população – muitos, inclusive, ainda na condição de escravizados", afirma o idealizador do Projeto Querino.

Embebido em formol e envolto por um receptáculo dourado, o órgão de quase 188 anos será recebido no Palácio do Planalto nesta terça-feira (23/08) e, em seguida, haverá uma cerimônia no Palácio do Itamaraty.

No mesmo palácio, o coração ficará exposto para visitação pública de 25 de agosto a 5 de setembro, e retornará ao Porto em 8 de setembro, informou o Ministério das Relações Exteriores.

Segundo informações veiculadas pela imprensa brasileira, o presidente de Portugal e os demais chefes de Estado de países de língua portuguesa foram convidados para as comemorações e devem visitar o coração no Itamaraty em 6 de setembro.