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"Polícia brasileira sempre viu negros como suspeitos"

Fábio Corrêa
2 de março de 2023

STF julga possibilidade de anular provas obtidas em abordagens policiais baseadas em perfilamento racial, ou seja, na cor da pele. Prática tem origem no período pós-abolição, aponta advogada e pesquisadora.

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Policiais armados e com máscaras diante de muro
"O policiamento urbano nunca foi gestado para combater crimes de classes médias e mais altas, foi sempre para a classe mais baixa", afirma pesquisadoraFoto: Fabio Teixeira/AA/picture alliance

O Supremo Tribunal Federal (STF) deu início nesta quarta-feira (01/03) a um julgamento sobre a possibilidade de anular provas colhidas em abordagens policiais motivadas pelo chamado perfilamento racial.

O termo diz respeito à identificação de suspeitos por agentes de segurança pública que não tenham provas objetivas, mas que utilizem características raciais para justificar as abordagens.

"Essas características são, em geral, a imagem do suspeito, a cor de pele – mais negra, mais parda –, passa pelo cabelo e também pelo comportamento, questões relacionadas à forma como a pessoa anda e fala, por exemplo", explica à DW a advogada Amanda Pimentel. "Dificilmente vamos ver nos autos dos processos e nas próprias falas dos policiais em depoimentos que eles abordaram uma pessoa porque é negra ou porque ela mora na periferia."

O STF analisa um habeas corpus apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo relativo a um homem negro condenado por tráfico de drogas após ser preso em 2020 com 1,53 grama de cocaína.

Em entrevista à DW, Pimentel – que é pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Social do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (AFRO-Cebrap) – aponta que o perfilamento racial tem ligação direta com o racismo estrutural da sociedade brasileira e com a formação das próprias polícias no período pós-abolição da escravidão.

"O policiamento urbano nunca foi gestado para combater crimes de classes médias e mais altas, foi sempre para a classe mais baixa", afirma.

A especialista também afirma que o debate sobre suspeição de identificação de suspeitos criminais tem tudo a ver com política de drogas. "O viés racial encontrou um reforço muito grande na Lei de Drogas de 2006", diz. "Desde então, vimos uma explosão no número de prisões por tráfico de drogas. Hoje o tráfico é uma das principais causas de encarceramento masculino e a principal de encarceramento feminino."

Embora não vinculativa, se a decisão do STF for favorável ao habeas corpus pode contribuir para a formação de uma jurisprudência nacional e redução da população carcerária, afirma.

DW: O que é perfilamento racial? Quais as diferenças para o crime de racismo?

Amanda Pimentel: O perfilamento racial é uma forma de você entender a atividade policial, em especial a abordagem policial, como uma pratica racialmente enviesada.

A legislação brasileira entende que um suspeito deve estar ligado a elementos concretos e objetivos ligados ao cometimento de um crime. Mas o que vemos na prática é que a identificação de suspeitos está pouco ligada ao cometimento concreto e mais à subjetividade, como características raciais do suspeito ou do réu.

Essas características são, em geral, a imagem do suspeito, a cor de pele – mais negra, mais parda –, passa pelo cabelo, pelo formato do cabelo e também pelo comportamento, questões relacionadas à forma como a pessoa anda e fala, por exemplo.

Chamamos isso de perfilamento racial porque a escolha sobre quem é suspeito de cometer algum crime está muito ligada a características raciais e, portanto, subjetivas, preconceituosas e discriminatórias pelos agentes de estado e muito pouco por elementos objetivos e concretos que indiquem a prática de um crime.

Porque quando falamos de perfilamento racial, não só estamos falando que tem características raciais que informam o que é um suspeito, mas também estamos dizendo que isso é muito subjetivo. Não tem um elemento objetivo, porque está sendo dito que a cor de pele da pessoa e como ela anda é ligada a um crime. E nós estamos, do ponto de vista jurídico, nos perguntando quais os elementos objetivos que indicam o que é suspeito e, para nós, nenhuma dessas características é objetiva.

Como identificar, num processo criminal, que houve o perfilamento racial?

Isso é algo que está em muitos processos criminais, principalmente em processos que se iniciam com uma prisão em flagrante, porque em geral são antecedidos de alguma forma de abordagem, que é a principal motivação que os policiais apresentam. A fundação jurídica para se fazer isso é a ideia de fundada suspeita. Ou seja, de que aquele indivíduo estava em uma atitude suspeita, era uma pessoa suspeita.

Mas, seguindo a lógica de como o racismo opera no Brasil – e aqui não opera só de uma forma direta, mas também indireta –, dificilmente vamos ver nos autos dos processos e nas próprias falas dos policiais em depoimentos que eles abordaram uma pessoa porque é negra ou porque ela mora na periferia. Isso não aparece explicitamente, mas não deixa de ser um critério racial, porque, no Brasil, o racismo não é sempre explícito.

A todo momento, o que os policiais apresentam em depoimentos nos autos é que as pessoas foram abordadas porque apresentaram nervosismo diante da polícia, porque estavam em uma zona vermelha, de perigo, que as pessoas foram abordadas porque elas já eram conhecidas da polícia. Eles sempre articulam essa ideia de vida pregressa, para que essa pessoa seja abordada.

Essas noções apresentadas pelos policiais nos autos não só são subjetivas, mas tampouco apresentam elementos concretos que possam estar ligados à prática do crime. Isso é não só subjetivo, como também discriminatório.

E quais as lacunas na lei que possibilitam que isso ocorra?

A legislação diz que a fundada suspeita é um requerimento formal, mas essa definição é vaga. O que tem que ser combatido é a ambiguidade e a vagueza que a lei deixou, e essa ambiguidade de fundada de suspeita que está no Código de Processo Penal deixou margem não só para que a polícia, no momento das abordagens, definisse quem é esse suspeito, como também acabou deixando margem para que opiniões pessoais e discriminatórias compusessem o conteúdo da fundada suspeita.

E quando buscamos as cortes, principalmente os tribunais superiores, queremos pontuar que essa vagueza foi ocupada por uma subjetividade, uma opinião pessoal dos policiais por meio desse conteúdo discriminatório que é muito composto de vieses raciais. E queremos que a jurisprudência possa contribuir para que avancemos nessa questão, para que ela venha a contribuir para uma completude da vagueza que foi deixada pela legislação do tema.

Quais as consequências para os julgamentos, prisões provisórias da decisão de hoje? Se ela for favorável, pode ter reduções em penas? O que pode acontecer agora?

A ideia principal desse habeas corpus [analisado pelo STF] e de outros esforços feitos nesse sentido é que as abordagens policiais que forem feitas com esse tipo de motivação – pela imagem e comportamento do indivíduo dito suspeito, por exemplo – sejam declaradas como ilegais.

O efeito é que, depois de declarar uma prova como ilegal, todo ato posterior seria considerado também ilícito. Isso levaria à finalização de muitos processos desses casos.

Isso teria um impacto positivo principalmente do ponto de vista do desencarceramento, porque temos muitas pessoas que acabam sendo encarceradas, seja provisoriamente, preventivamente ou definitivamente, por conta de casos que se iniciaram em uma abordagem abusiva e ilegal, e isso contribuiria diretamente com a diminuição do número de presos.

Podemos traçar uma origem do perfilamento racial no Brasil? Como essa mecanismo vem operando historicamente nos agentes policiais e no próprio Estado brasileiro?

Fica muito evidente quando olhamos não só para a formação do Estado brasileiro, mas também para a formação das polícias, que foram formadas e direcionadas como instituição para combater classes "perigosas".

Principalmente no período pós-abolição, é uma polícia que vai principalmente conter e fazer a gestão da vida de famílias e de pessoas descendentes diretas de escravizados, de pessoas pobres das favelas, de populações que estão vivendo em territórios à margem da sociedade.

Desde muito cedo, no Brasil, a polícia sempre teve uma postura de combate à criminalidade das classes mais baixas, e não das classes médias e mais altas. E, desde muito cedo, o suspeito sempre foi um suspeito negro, sempre foi, por exemplo, na formulação dos primeiros códigos de processo penal, aquela população que "vadiava", aquela população que tinha práticas e signos negros. Inicialmente, a dança e a cultura [negras] eram muito criminalizadas, como foi a capoeira.

Ao longo do desenvolvimento do país, isso continua a ser uma verdade: a imagem do suspeito criminal continuou a ser, na visão dos policiais, um jovem negro que "não trabalha", que comete um determinado tipo de crime – e de que esses indivíduos que são suspeitos e que deveriam ser combatidos.

Essas práticas não só reatualizam uma imagem que é historicamente racial como também comprova, ao longo dos anos, como essa atividade do policiamento urbano sempre foi organizada de forma a gestar apenas um determinado tipo de conflito, que é um conflito das classes mais pobres. O policiamento urbano nunca foi gestado para combater crimes de classes médias e mais altas, foi sempre para a classe mais baixa.

Historicamente pesa bastante, podemos apontar como uma das formas estruturantes da atividade policial, que muitas vezes não é só uma atitude individual dos agentes. É a forma como a instituição está estruturada.

O quanto o perfilamento racial está ligado ao combate ao tráfico de drogas e quais os reflexos dessa relação?

O debate sobre suspeição de identificação de suspeitos criminais tem tudo a ver com política de drogas. Esse viés racial que compõe a fundada suspeita encontrou um reforço muito grande na Lei de Drogas de 2006, principalmente porque a vagueza e a ambiguidade que autorizam a abordagem encontraram um reforço muito grande na vagueza e na ambiguidade da falta de diferenciação do que é um usuário e um traficante.

No momento em que o agente que está no policiamento ostensivo resolve abordar alguém porque essa pessoa é suspeita de tráfico, ele não só faz uma avaliação subjetiva do que é o suspeito, como ele define se essa pessoa é usuária ou traficante, já que a Lei de Drogas não trouxe critérios claros sobre isso.

E essa não é uma argumentação vazia porque, principalmente depois de 2006, vimos uma explosão no número de prisões por tráfico de drogas. Hoje o tráfico é uma das principais causas de encarceramento masculino e a principal de encarceramento feminino, o que mostra uma relação muito grande entre a vagueza e ambiguidade da fundada supeita e a falta de critério da Lei de Drogas.

Como mudar a cultura das polícias e forças de segurança em relação a esse tipo de abordagem e para que o perfilamento racial seja abolido?

Historicamente temos uma dificuldade, não só dentro das polícias, mas nas instituições que compõem o sistema criminal e de segurança pública, de compreender e fazer uma calibração entre a finalidade da atuação policial com os objetivos democráticos de uma segurança pública democrática que a Constituição de 1988 tenta alcançar.

Existe uma grande resistência dentro das próprias corporações, não só das instituições militares, mas também outras instituições, e da Justiça Criminal, de se fazer isso.

A finalidade do mandato policial não é de combater um inimigo. Dentro de uma sociedade que se quer democrática, a finalidade da atuação policial tem que ser a gestão da paz e dos conflitos respeitando o devido processo legal, o direito dos acusados, o direito das pessoas.

Existe essa grande disputa interna, não só dentro das polícias, mas de outras instituições também, se o sistema de segurança vai continuar a seguir ideais e objetivos militarizados, como se vivêssemos numa guerra permanente, ou se vamos deixar de ter essa visão e abraçar outra visão no sentido de que não é preciso enxergar em certas populações um inimigo, mas de entender essas pessoas como cidadãos e sujeitos, com direitos a serem respeitados.

Isso é um pouco dos valores que a polícia herda de períodos ditatoriais e perpetua ao lidar com populações vulneráveis. Requer mudanças não só na formação dos policiais, mas também no ingresso desses policiais na instituição.

Mesmo não vinculativa, essa decisão do STF sobre o perfilamento racial, se favorável, pode contribuir de que forma para a Justiça brasileira?

Embora não vinculativa, é importante que essas decisões comecem a ser tomadas para que se comecem a formar precedentes judiciais que possam vir a influir principalmente na formação de uma jurisprudência nacional, dentro dos juízos de primeira instância, no sentido de entender que essa prática precisa mudar.

É importante também entender que não só o policial, mas outros atores do sistema de Justiça, como os juízes, devem controlar a posteriori essa prática, porque, se o ato foi ilegal, os juízes têm competência para entender que aquilo é ilegal.

Assim, deixa-se de convalidar com essa prática policial no sentido até de impor aos policiais e às polícias uma determinação de que elas expliquem, de uma forma precisa, direta e concreta, o que compõe a suspeição, o que autoriza aquela abordagem e aquele flagrante. Com isso, está sendo dito que esses critérios vagos, indecisos, subjetivos e muitas vezes raciais não são legais juridicamente e que, a partir de então, esse tipo de pratica não vai passar.

O juiz tem esse poder de definir novo parâmetros para a atuação policial. Essa é uma contribuição importante que se deixa para a jurisprudência.